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Contando os milhões

Qual o número de brasileiros livres ou escravos? Como contar os votos de cada província? Problemas do império. Os censos evoluíram no século XX e hoje traduzem modernidade e afirmação nacional

Tarcísio Botelho


Os levantamentos de população existem no Brasil desde o início da colonização, mas só foram aperfeiçoados e ganharam periodicidade em meados do século XVIII. Por influência do Iluminismo, Portugal se preocupava em colher informações precisas sobre suas riquezas. Entre elas, a mais importante, sem dúvida, era seus habitantes. Após a independência brasileira, aumentou a preocupação com as estatísticas de população, que serviriam não só para cobrar impostos ou convocar as pessoas para o exército: era necessário contar os votos nas províncias e definir o número de deputados que cada uma teria. Várias tentativas foram feitas para apurar esses dados, mas todas elas esbarravam em uma série de dificuldades. Os ministros do Império solicitavam informações sobre a população das províncias por intermédio de ofícios. Embora algumas respondessem aos apelos, o mais comum era enviarem como resposta reclamações e desculpas por atrasos, imperfeições ou simples ausência de dados.

Os problemas se avolumavam quando o próprio Estado imperial tentava realizar esses levantamentos, já que não possuía funcionários específicos. Era necessário contar com a boa vontade dos secretários
das províncias, dos párocos, juízes de paz e delegados de polícia, que precisavam interromper seus afazeres cotidianos para se dedicar à tarefa extra de contar habitantes. Às vezes, eles entravam em conflito com os vizinhos, pois as fronteiras das paróquias e distritos não eram bem definidas.

Outro problema grave era a falta de coordenação dos trabalhos. Como havia apenas um vago pedido do ministro do Império, cada um respondia como bem entendia. Assim, os mais eficientes realizavam prontamente seus trabalhos. Outros protelavam, enviando os resultados de seus distritos vários meses, e mesmo anos, após o pedido inicial. Esta demora prejudicou seriamente os estudos de população, pois muitas pessoas podiam mudar de distrito ou paróquia e serem contadas duas vezes, ou simplesmente não serem contadas.

O que caracteriza um censo "moderno"? Em primeiro lugar, é necessário que o levantamento seja simultâneo, ou seja, que as pessoas dêem as informações tendo como referência um mesmo dia do ano. Em segundo, é preciso determinar qual área cada recenseador vai cobrir, para evitar que dois agentes visitem um mesmo local. Além disso, todos os habitantes de cada área precisam ser contados. E, por último, deve-se enumerar individualmente todas as pessoas. Desta forma, o formulário do censo contempla cada indivíduo.

Em 1852, aconteceu no Brasil a primeira tentativa de se realizar um recenseamento seguindo estes princípios. No ano anterior, os regulamentos do censo e do registro dos nascimentos e óbitos haviam sido aprovados na Lei Orçamentária. Este esforço ocorria em um momento significativo para o Brasil, já que a década de 1840 chegava ao fim com o Império alcançando a estabilidade política. Depois de superados os problemas das revoltas imperiais, as elites políticas começavam a resolver outras questões, até então pendentes. Assim, em 1850 foram aprovados o Código Comercial, a Lei de Terras e a Lei do Tráfico de Escravos. Nos anos seguintes, outros pontos foram colocados na agenda política, dentre os quais o censo nacional.

A notícia da obrigatoriedade do registro civil, no entanto, deu origem a nova série de revoltas, estimuladas pelo boato de que ele teria por fim escravizar a "gente de cor". Distúrbios graves foram registrados nas províncias da Paraíba, Ceará, Alagoas, Sergipe e Pernambuco, provocando a suspensão do censo pelo próprio governo em 1852. Com o passar dos anos, cresceram os problemas relacionados à falta de dados demográficos. Os debates em torno do fim gradual da escravidão e da implantação de políticas educacionais careciam de informações precisas sobre quantos eram os brasileiros, livres e escravos. E assumia proporções de crise política quando o assunto era o colégio eleitoral de cada província: como estimar quantos deputados cada uma teria sem poder
confiar nas estatísticas de população?

Quando ressurgiu, em 1871, o tema do censo encontrou enorme receptividade na elite política. Sua lei e seus regulamentos foram rapidamente aprovados, e, no dia 1º de agosto de 1872, começaram os trabalhos do primeiro Recenseamento Geral do Império, como foi chamado, em todo o território nacional, menos nas províncias que, por alguma falha, adiaram seus levantamentos. Em Mato Grosso, transferiu-se a data para o 1º de outubro de 1872. Em Goiás, foi feito em 25 de junho de 1873, e em Minas Gerais, em 1º de outubro do mesmo ano. A última província a realizar seu levantamento populacional foi a de São Paulo, em 30 de janeiro de 1874. E apenas 32 das 1.473 paróquias do Império não participaram do primeiro censo.

Um dos aspectos interessantes deste Recenseamento Geral é que ele teve como base territorial as paróquias, que compõem uma divisão eclesiástica, e não civil. Talvez se esperasse, com isto, garantir a colaboração dos clérigos, que eram considerados funcionários públicos e, mais do que isso, os únicos membros da burocracia estatal, presentes em todo o território brasileiro. Os padres, com evidente influência sobre a população, foram um importante ponto de apoio para o censo, atuando como divulgadores e membros das comissões censitárias. Isto ocorreu sobretudo nas regiões distantes, onde eram poucos os habitantes alfabetizados e realmente habilitados aos trabalhos exigidos. Ironicamente, este apoio ocorreu no início dos conflitos que conduziram à separação definitiva entre a Igreja e o Estado no Brasil: a chamada Questão Religiosa.

Em 1877, após cinco anos de trabalho, o ministro do Império pôde finalmente comunicar à Assembléia Geral Legislativa o final da impressão dos resultados do recenseamento. Embora apresentando problemas nos seus dados finais, foi uma vitória da burocracia imperial. Já para a elite política e intelectual da época, era a entrada do Brasil no seleto clube das "nações civilizadas" que realizavam estatísticas de população.

Em meados do século XIX, se começou a pensar na necessidade de censos nacionais, prática que se vinha espalhando pelo mundo ocidental desde o século XVIII. Em 1749, os trabalhos censitários tornaram-se sistemáticos e periódicos na Suécia. Em seguida, na Noruega e na Dinamarca (1769), na Espanha (1787), nos Estados Unidos (1790), na França (1800) e na Inglaterra (1801). Com o avançar do século XIX, realizar censos passou a ser um sinal de modernidade e de afirmação de autonomia do Estado nacional.

O segundo recenseamento só ocorreu em 1890, no período republicano. Embora parecido com o censo de 1872, teve diferenças sensíveis de execução, em especial no prazo para sua preparação - publicado em decreto no dia 12 de agosto, teve que ser realizado em 31 de dezembro, menos de cinco meses depois. A pressa na execução refletiu negativamente nos dados apurados, causando demora na tabulação dos resultados e subenumeração dos habitantes. O censo de 1900 também esteve cercado de problemas. Seus dados nunca foram apurados totalmente e devem ser vistos com desconfiança. Em 1910, o censo foi suspenso devido à conjuntura política instável. Porém, três anos depois, se começou a organizar o que seria o melhor trabalho censitário da época.

O ano de 1920 surge como uma data importante, por situar-se a dois anos do centenário da independência. O Estado Republicano organizava, para 1922, uma exposição internacional e desejava que ela retratasse bem o povo e a nação.Assim, decidiu realizar um censo demográfico e econômico. Dado o amplo planejamento, o trabalho foi bem-sucedido e apresentou qualidade singular. Dois anos depois, já era possível apresentar um retrato da nação no Pavilhão da Estatística montado na Exposição Universal do Rio de Janeiro. Em 1930, o censo foi novamente suspenso, em decorrência da Revolução de 1930, que trouxe inovações profundas para a vida dos brasileiros. Uma de suas principais conseqüências foi o processo de reformas do aparato estatal brasileiro. A reforma administrativa e a criação de inúmeras agências estatais também atingiram a produção de estatísticas. Neste contexto foi fundado, em 1936, o Instituto Nacional de Estatística, que dois anos depois passou a se chamar Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), responsável a partir de então pela realização dos censos.

Com o IBGE, a produção de estatísticas assumiu um caráter sistemático e especializado, exigindo a criação de um corpo técnico estável. As atribuições do órgão estavam fortemente marcadas pelo nacionalismo do novo Estado brasileiro. O censo de 1940 apresentou uma qualidade invejável e foi o primeiro a realizar estudos demográficos indiretos, recorrendo a cálculos estatísticos sofisticados para a época.O censo de 1940 iniciou uma série de procedimentos que duram até hoje. Desde então, os recenseamentos ocorreram a cada dez anos (exceto em 1991), com a introdução de questões cada vez mais detalhadas.

Recentemente o IBGE anunciou que irá realizar novo censo em 2005, com as atividades a serem desenvolvidas em 2004, 2005 e 2006 já constando do Plano Plurianual de Investimento e custos previstos no Orçamento. Nesses três anos estão previstos R$ 650 milhões, dos quais R$ 560 milhões em 2005, R$ 40 milhões para trabalhar os dados em 2006 e R$ 50 milhões agora em 2004 - a maior parte para atualizar a cartografia brasileira e os 235 mil mapas que servirão de base para os recenseadores contarem com eficácia milhões e milhões de brasileiros.


Tarcísio Botelho é professor do mestrado em Ciências
Sociais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e
doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, com a
tese População e nação no Brasil do século XIX (1998).

 

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