Unidades 001 e 002:
a casa popular contemporânea?
Marcelo Tramontano

Como citar esse texto: Tramontano, M. Unidades 001 e 002: a casa popular contemporânea? In: revista Projeto e Design. n. 243, p. 30-32. São Paulo: Projeto Editores, 2000.

As mudanças ocorridas na sociedade brasileira durante as últimas décadas exigem novos modelos de habitação, incluindo a de interesse social. Por um lado, o déficit habitacional no país tem rendido inúmeros artigos e reportagens; por outro, uma revisão das atuais soluções arquitetônicas para unidades e conjuntos destinados à população de baixa renda - ultrapassadas pelas profundas transformações tanto do perfil demográfico como dos padrões comportamentais da nossa sociedade - pouca atenção tem recebido, tanto da mídia quanto dos próprios arquitetos e administradores públicos. Basta notar a família nuclear convencional, que vem perdendo espaço no total de grupos domésticos do país. De modelo absolutamente dominante até os anos 1960, sua participação vem caindo e chega atualmente a pouco mais de 60% dos grupos. Além de a própria família nuclear já não ser mais a mesma, já que as relações entre seus membros têm se modificado profundamente, ocorre também que os mais de 30% restantes não se referem a um único formato familiar, mas a uma grande e crescente variedade de arranjos cada vez mais aceitos socialmente. O fato é que todos estes novos grupos constituem os atuais candidatos a moradores das habitações de interesse social. Esta diversidade de perfís, que permite supor uma diversidade ainda maior de modos de vida, abre-nos uma série de questões que, se por um lado ainda se encontram longe da agenda dos que tomam as decisões no campo da habitação social no Brasil, levam-nos a refletir sobre habitações mais sintonizadas com nosso tempo.

Os conceitos que ainda norteiam a concepção espacial e tecnológica destas habitações remontam ao modelo - internacionalmente difundido, aliás - da habitação burguesa européia do século 19, resultando, em sua imensa maioria, em casas divididas em cômodos funcionalmente estanques - quartos, sala, cozinha e banheiro -, agrupados em zonas sociais, íntimas e de serviço, e executadas,
principalmente, em alvenaria de tijolos. Além disso, a concepção de moradias populares, tal qual as conhecemos hoje, no Brasil, tem sido fortemente determinada por princípios enunciados pelo Movimento Moderno europeu da primeira metade do século XX, que, disseminados mundialmente, acabaram inibindo, até pela extrema conveniência da fórmula da habitação-tipo, infinitamente reprodutível, qualquer questionamento sobre o assunto.

Novas propostas que, além de eficientes e de baixo custo, contemplem as mudanças ocorridas, devem ser buscadas. Baseado nessas premissas, o GHab, Grupo de Pesquisa em Habitação da Universidade de São Paulo, campus de São Carlos, SP, tem desenvolvido pesquisas com propostas inovadoras de habitação, marcadas pela noção de Diversidade – de ocupação, de materiais e de soluções técnicas. Duas unidades já construídas estão disponíveis no campus de São Carlos para os interessados em verificar algumas dessas novas possibilidades de programa e de repertório de materiais. Com uma base de dados ainda em processo de conclusão, a experiência já mostra, no entanto, que essas duas unidades, e as concepções que as inspiraram, têm algo a oferecer à discussão sobre o tema da Habitação no Brasil.

Projeto e conceito

Produto, portanto, de análise e reflexão sobre a habitação social convencional brasileira, o projeto das Unidades Experimentais de Habitação 001 e 002 quer contribuir para recolocar a necessidade deste redesenho na pauta de discussões sobre a habitação contemporânea em geral, e de interesse
social em particular. Norteador de todo o processo de concepção, o conceito de Diversidade vai
também aplicar-se às possibilidades de uso dos espaços das casas, aos critérios de escolha dos materiais e às opções de detalhamento das soluções técnicas:

O projeto prevê diversidade de configurações e de materiais. As casas possuem componentes espaciais – blocos de serviços e blocos de espaços servidos – de cuja justaposição resulta o espaço doméstico. Tais elementos podem ser reagrupados de infinitas maneiras, originando configurações diversas. Além disso, a ausência de hierarquia na maioria dos espaços e a flexibilidade permanente de certos fechamentos internos e externos viabilizam usos múltiplos: alternados, sobrepostos ou, simplesmente contíguos. A idéia de que a justaposição dos componentes espaciais pode assumir infinitas configurações tem seu correlato na escolha de materiais que se prestam a aplicações diversas: blocos isolantes termoacústicos pré-moldados de terra-palha em vedações verticais; painéis de taipa-de-mão como vedação vertical; chapas onduladas de fibra de vidro que ora compõem coberturas, ora vedações verticais internas e externas; peças de madeira de seção comercial são vigas, mas também partes de pilares compostos etc. De maneira geral, os materiais são empregados, preferencialmente, em peças curtas ou elementos de pequenas dimensões, possibilitando o uso de produtos de menor valor comercial e permitindo desenhos mais coerentes com a conceituação geral.

A diversidade de soluções técnicas se verifica na premissa de que cada componente construtivo resulta da justaposição de diferentes elementos feitos de diferentes materiais. Por exemplo, peças estruturais de madeira são ligadas ou contraventadas por peças metálicas ou, ainda, ambos os materiais trabalham juntos em vigas do tipo vagão, suportando telhas plásticas translúcidas. As próprias vedações verticais, compostas, em linhas gerais, por peças esbeltas de madeira e blocos de terra-palha, podem tanto ser consideradas paredes de madeira isoladas com terra crua, quanto paredes de terra crua revestidas com madeira.

Uma espacialidade alternativa

Com áreas em torno de 54 metros quadrados cada, as duas casas apresentam uma estrutura espacial bastante simples. Os chamados espaços de serviços, que, na habitação convencional, dispersam-se pela totalidade da edificação, concentram-se aqui em um único bloco – o de Serviços –, em geral a parte fixa da habitação, por conter os equipamentos hidráulicos. Os espaços destinados a abrigar as demais atividades distribuem-se nos blocos denominados, por oposição, blocos de Espaços Servidos – ou seja, sem equipamentos fixos. Justapostos em um primeiro momento, estes blocos foram em seguida distanciados, permitindo o surgimento de um espaço intersticial que abriga circulações horizontais e verticais entre as diversas áreas, mas que também passa a caracterizar-se como um lugar de convívio por excelência, com seu pé-direito duplo (caso da Unidade 002) ou triplo (Unidade 001) e sua luminosidade generosa. Conexão multiuso entre as demais funções da casa, esta área central se configura conceitual e concretamente como um local coberto, sem estrutura própria, obtido graças ao afastamento dos blocos. A cobertura e fechamento dessa área central tem sua origem em uma prática bastante disseminada entre moradores de casas populares do estado de São Paulo, que costumam cobrir boa parte da área não-construída de seus lotes com telha translúcida similar à utilizada nas Unidades 001 e 002.

Situada no piso térreo do bloco de Serviços, a cozinha parece conter-se em um grande armário, permitindo ocultar seus equipamentos ou torná-los acessíveis conforme a conveniência do momento. Trata-se de uma alternativa intermediária às soluções mais usuais: a de um cômodo fechado para a atividade de preparação de alimentos ou a de se dispor de uma simples bancada de serviços dentro da área de convívio. O costume de se receber visitantes na cozinha pode, neste caso, ganhar o conforto que lhe falta na habitação convencional, já que o simples fechar das portas dobráveis oculta bancada e equipamentos, qualificando a área central como lugar de recepção. Aliás, dois tipos de flexibilidade são explorados nas Unidades: a entendida como possibilidade de alteração do perímetro dos cômodos, que se limita ao piso térreo, através das portas dobráveis em
torno da área central – o que inclui as da cozinha, mas também a dos espaços servidos –, e ainda a flexibilidade graças à ausência de hierarquia dos espaços do térreo, possível pela colocação da entrada da casa na área central, que não tem equipamentos fixos.

A busca de barateamento do custo associada à definição de padrões estéticos contemporâneos embasam algumas atitudes projetuais. Por exemplo, o emprego da chapa ondulada em fibra de vidro, comumente utilizada como cobertura, em portões e fechamentos fixos, ou, ainda, o uso de holofotes industriais de alumínio em posição invertida, e de pratos de acrílico transparente, adaptados em cuba dos lavatórios do piso superior. Preferiu-se construir as duas unidades separadamente, com um ano de intervalo entre os dois canteiros, para que se pudesse reestudar soluções construtivas e espaciais testadas na construção de uma unidade, aperfeiçoando-as na construção da outra. Assim, por sua implantação no terreno, a primeira unidade construída foi a 002, em 1998, e a segunda, a 001, em 1999. Terminada a fase de anteprojeto, a proposta arquitetônica foi detalhada para execução, utilizando-se estudos realizados a partir de ensaios em modelos parciais ou reduzidos dos componentes das edificações. O projeto executivo foi feito paralelamente ao da produção dos componentes e da montagem das edificações, buscando possibilitar a pré-fabricação da totalidade dos componentes e a montagem rápida no canteiro. Variáveis como tempo de execução e grau de dificuldade de cada etapa foram registradas em planilhas, agora objeto de análise no sentido de aperfeiçoar procedimentos técnicos para futuros projetos. Quanto aos custos, os números de que dispomos neste momento retratam principalmente o que foi gasto neste canteiro experimental, com as facilidades e obstáculos que esse status pressupõe, mas ainda não informam o custo do metro quadrado de todas as partes das casas, nas condições do mercado convencional. Esses números ainda estão sendo apropriados com o objetivo principal de auxiliar futuros projetos de habitação.

As unidades não foram concebidas como protótipos, destinados a serem repetidos infinita e identicamente, como em conhecidas propostas modernas de décadas anteriores, apropriadas por governos e especuladores contemporâneos. Essas residências apenas querem indicar que é possível trabalhar de forma inovadora e barata quando se trata de produzir habitação social no Brasil, tendo como requisito básico a disposição para questionar espacialidades, materiais e técnicas construtivas convencionais. A pesquisa desenvolvida pelo GHab-USP aponta direções muito claras a serem, eventualmente, seguidas no processo projetual de habitações de baixo custo, mas que ainda necessitam de observações e verificações na obra construída, o que já vem acontecendo desde novembro de 1998, na unidade 002, e desde novembro de 1999, na unidade 001. As Unidades Experimentais de Habitação 001 e 002 foram construídas no âmbito da pesquisa "Habitação social contemporânea: concepção arquitetônica e produção de componentes em madeira e terra crua", financiada, principalmente, pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e pelo Conselho Nacional de Pesquisas Científicas (CNPq). Ambas as casas abrigam agora os escritórios do grupo*, e têm suas portas abertas a visitantes interessados nas reflexões que elas esperam estimular.

* NOTA (2006): Desde outubro de 2000, a Unidade 001 abriga o grupo Nomads e a Unidade 002, o grupo Habis. Ambos originaram-se do grupo GHab, extinto na mesma data.

 

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