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FF Estamos vendo hoje o encerramento de um tipo de transmissão do saber. A grande revolução provocada pelas novas tecnologias está apontando para outra relação entre os homens e os saberes. Aliás, esse é o grande tema do seu trabalho mais recente no livro Cibercultura. Quais são exatamente essas mudanças, e o que elas representam para o sistema de educação tradicional?

PL Eu diria que há três grandes mudanças na relação com o saber: a primeira dela diz respeito à velocidade com a qual os conhecimentos aparecem, renovam-se e tornam-se obsoletos. A maneira mais simples e mais marcante de explicar essa velocidade seria dizendo que até uns 25 anos atrás quando um jovem aprendia uma profissão, a maior parte do que aprendia ainda era válido no final de sua carreira profissional. E ele podia até mesmo transmitir esse conhecimento aos seus filhos ou a aprendizes. Hoje em dia, a situação é completamente diferente. Talvez não com relação a todas as profissões mas com relação a um número cada vez maior de profissões. Hoje em dia, o ciclo de renovação dos conhecimentos é de tres, cinco, dez anos. E não só no caso das profissões ligadas à alta tecnologia. Pertencemos a um ciclo que está em perpétua transformação. É claro que sempre houve novidades. Sempre há novos conhecimentos que aparecem sobre uma base de estabilidade. Hoje em dia, a própria base está em movimento permanente!

Eu diria que isso é a primeira mudança de nossa relação com o saber, e talvez a mais importante de todas. Pense no exemplo de uma escola. Você percebe imediatamente que um pressuposto essencial da educação institucional é o de que os mais velhos sabem mais que os mais novos. Os professores são mais velhos que os alunos. Os alunos progridem de classe em classe e à medida em que se tornam mais velhos, passam a níveis superiores. Tudo é organizado em função disso. Por quê? Porque o conhecimento era essencialmente um estoque, e acumulávamos esse estoque à medida em que aprendíamos. Hoje em dia, navegamos em um fluxo. Não acumulamos mais um estoque, e por isso é que há, evidentemente, um questionamento da escola como instituição. Vamos ter que encontrar novas maneiras para enfrentar essa situação. Em particular, questionando a relação entre professor e aluno, o conceito de classe e de currículo mas, sobretudo, ensinando e fazendo com que se aprenda. A meta não é ensinar, mas fazer com que todos aprendam. Fazendo com que todos aqueles que se beneficiam de uma instituição escolar aprendam a sobreviver, a navegar e a viver bem nesse universo de conhecimentos em fluxo permanente. Essa é a primeira mudança.

A segunda mudança é a do trabalho. Pelas razões que acabo de expor, o trabalho consiste, hoje em dia, cada vez mais em aprender, em transmitir o que sabemos aos outros, aos novos que chegaram, em comunicar aos outros uma parte desses conhecimentos, em tentar compreender quais os conhecimentos dos outros para melhor colaborar e cooperar. Isso também consiste em inventar novos conhecimentos. Todos nós somos, de certa forma, um pouco pesquisadores. A situação evolui tão rapidamente que não há resposta para tudo. Às vezes, nós mesmos temos de encontrar resposta. Talvez de maneira coletiva, talvez de maneira individual. Mas não existe uma resposta já pronta. Portanto, com cada vez mais freqüência, estamos diante de situações onde o trabalho é a transação de conhecimentos. E isso, em todas as profissões, mesmo nos setores primários, mesmo na pesca, na agricultura, e o mais evidente, na indústria, sem falar no setor terciário. A relação com a educação tradicional é a seguinte: será que é para esse trabalho do qual falamos que preparamos as crianças hoje em dia? Será que as ensinamos a aprender sempre, a cooperar? Será que as ensinamos a transmitir aquilo que já sabem? Pois é isso que serão obrigadas a fazer. Será que lhes damos uma mentalidade de empreendedores no espaço do conhecimento? Portanto, será que são as estruturas clássicas do ensino que melhor preparam essa situação? Não tenho certeza.

A terceira mudança da relação com o conhecimento é a que diz respeito às tecnologias. Mas note que eu coloco as tecnologias em terceiro lugar. Não digo que é a tecnologia que determina tudo. Mas nem por isso ela deixa de ser importante. Na tecnologia, para mim, essencialmente o que é mais importante para essa nova relação com o saber é a informática. É o suporte digitalizado da informação, da comunicação, que faz com que abordemos a informação de maneiras interativas e que todas as informações sejam ligadas entre si. Este ponto é capital, e bastante novo. Para mim, a informática, os computadores e as redes de computadores são suportes de tecnologias intelectuais. Isto é, são suportes de técnicas que vão prolongar, ampliar, transformar, as faculdades mentais em faculdades cognitivas como, por exemplo, a memória. A memória é uma faculdade cognitiva. É claro que quando inventou-se a escrita, toda a relação da humanidade com a memória se transformou. Não somente, é claro, a memória individual mas sobretudo a memória coletiva que pôde, por exemplo, juntamente com a escrita, ficar praticamente infinita, se estender de modo infinito. Podemos comparar as coisas, certo? Quando inventou-se a imprensa, houve um salto pois, a partir desse momento, as informações puderam se tornar facilmente acessíveis e, portanto, surgiram novas possibilidades de comprar, de se relacionar, etc. À partir desse momento, a informação e o conhecimento deixaram de ser um recurso raro. Mas, hoje em dia, temos um acesso ainda mais fácil à memória imemorial da humanidade graças à rede de computadores. Não se trata de uma memória estática, como as palavras impressas em um livro, mas de uma memória dinâmica, em transformação constante e continuamente atualizada que é alimentada por milhares de pessoas e que todos lêem e discutem entre si, etc. Uma memória muito mais viva e próxima da memória natural. Portanto, é um tipo de extensão da memória coletiva que transforma completamente a relação da espécie humana com o estoque de informações.

Ora, a escola foi inventada a partir da escrita estática tradicional. Inventamos a escola para ensinar a ler e escrever o que ainda é, aliás, absolutamente indispensável, mas as tecnologias intelectuais utilizadas na escola são a oralidade e a escrita estática. O professor fala e os alunos tomam nota e, às vezes, utilizam textos impressos. A escola é uma instituição cuja estrutura não é muito adequada para uma utilização otimizada de novas tecnologias. Claro, por razões econômicas, pois tudo isso custa caro. Também certamente porque os professores não são formados para utilizar as técnicas. Certamente porque não há um projeto pedagógico que corresponde à utilização dessas tecnologias. Portanto temos aí uma fase de transformação e adaptação que provavelmente vai durar muito tempo. Talvez a escola se transforme, passe por uma metamorfose radical para dar conta desse novo trabalho, de novas tecnologias intelectuais, do fluxo do conhecimento. Talvez a aprendizagem passe ainda por outros caminhos. Talvez a escola perca seu monopólio, fato que aliás, em grande parte já ocorre. A escola e a universidade perderam o monopólio de transmissão do conhecimento.

FF A internet é alvo das mais variadas críticas, entre elas a de veicular muito lixo, ou informações não seguras. Essa mesma crítica não poderia ser aplicada a qualquer meio de informação, seja ele oficial ou não?

PL Digamos que nenhuma informação é garantida. Não é porque ensinamos algo na universidade que isso é verdade. Já ensinamos muitas besteiras na universidade. E é um professor universitário que está falando! Não é porque alguma coisa está impressa, que é verdadeira. A prova é que existem coisas impressas e que dizem exatamente o contrário das outras. Não é porque vimos uma coisa na TV que ela é verdadeira, sabemos disso. Não é porque ouvimos algo, que isso é verdadeiro. Portanto, de qualquer forma, não é porque percebemos alguma coisa, que ela é verdadeira, concorda? Há tantas mentiras, mesmo sem levar em conta todas as novas tecnologias. Com a linguagem, podem-se fazer tantas mentiras, tantas interpretações falsas, tantas manipulações... Portanto, somos confrontados a esse problema de todas as formas, com ou sem a internet, não? Mas, agora: creio que quanto mais estamos em um espaço em que vários pontos de vista podem se confrontar, mais temos garantias de que não somos manipulados, pois quando a fonte de informação é uma só, não temos como verificá-la, não é? Se você imaginar uma ditadura de um só canal de televisão, uma só estação de rádio, controlados pelo governo, tudo é controlado mas é aí que há mais manipulação. Lembre-se de que na Guerra do Golfo todas as televisões do mundo retransmitiam a CNN, e todas as imagens da CNN vinham do serviço de comunicação do exército americano. Não era internet. Mas onde estava a manipulação? Ela estava presente nessa situação pois havia uma única fonte de informação. Quanto maior for a diversidade de fontes de informação, mais fácil será se defender da manipulação e mais fácil se tornará a busca pela verdade. Pois a verdade não é alguma coisa que é dada por pessoas detentoras da verdade. A verdade é algo que se constrói. Conseguir chegar à verdade é um trabalho. Não vou ensinar isso a um jornalista. Você sabe que quanto mais trabalhamos, mais o resultado vai estar próximo da verdade. Quanto mais nos contentamos em repetir o que ouvimos, menos é provável que isso seja verdade.

FF Como extrair conhecimentos do aparente caos informal que existe hoje na internet, na rede?

PL Digamos que, em primeiro lugar é preciso compreender que a internet não é um grande banco de dados em desordem, dentro do qual ficamos perdidos. A internet é, em princípio, pessoas que se comunicam umas com as outras. É um sistema de comunicação entre as pessoas. E até os documentos que encontramos na world wide web são apenas mensagens que as pessoas deixam, à disposição de outras pessoas. Portanto, é preciso que nos coloquemos dentro dessa noção de espaço de comunicação coletivo. A partir daí, se você está interessado em um tema, ou se você quer uma informação sobre um tema, é preferível que você tenha uma certa familiaridade com este tema e também que você tenha uma certa familiaridade com os sites da web referentes a este tema. A internet não é como a TV, em que você muda rápido de canal. Não é algo instantâneo. É necessário um trabalho de familiarização com o processo de encontrar a informação, de encontrar o conhecimento. Por outro lado, também é interessante freqüentar grupos de discussão eletrônica, fóruns eletrônicos, News Groups, listas de difusão, que são distribuídas por sistemas de mensagem eletrônica por pessoas que se interessam pelos mesmos temas que você. E aí você faz funcionar a inteligência coletiva. Você faz perguntas e as pessoas lhe indicarão os sites.

FF Obter educação através da internet não é um pouco superficial?

PL Não, mas não se trata de fazer com que a educação passe somente pela internet. No entanto, muitas pessoas que atualmente procuram e têm vontade de aprender alguma coisa, usam esse meio. Não acho que se deva basear toda a educação na internet. Ela é um meio como qualquer outro. Digamos que ela seja uma nova forma de biblioteca. Mas ela é mais interessante que uma biblioteca, pois a biblioteca é um estoque de textos, enquanto a internet é um meio de comunicação entre as pessoas, no qual existem micros-grupos, "micro-climas" de inteligência coletiva ligados uns aos outros, e isso leva tempo. Se você navegar uma hora na internet, vai ser superficial e você dirá: "A web é superficial". Mas se você participar de vários grupos de discussão, se você conhecer todos os cantos dos sites da web que lhe interessam, se participar da fabricação desse imenso hiperdocumento coletivo, fazendo o seu próprio site, criando ligações com os sites interessantes, etc., isso não é superficial. Superficial é a implicação que você pode ter ou não com esse espaço.

FF Até a poucos anos atrás, os cientistas tinham que aguardar muito tempo para publicar os resultados de suas pesquisas em revistas especializadas. Hoje, a internet possibilita não apenas uma comunicação mais ágil entre pesquisas ainda em andamento, mas igualmente uma forma de publicação não oficial. Como você vê o fato dessa comunicação estar sendo relativizada?

PL Bem, na verdade, o que é mais interessante nessa nova situação são dois fenômenos. O fenômeno da aceleração da comunicação e o fenômeno da desintermediação da comunicação. Em primeiro lugar, a aceleração: podemos dizer que, quando um cientista publicava algo em uma revista científica, ou ainda, quando lia essa revista científica, ele a lia todos os meses, ou a cada tres a seis meses, pois as verdadeiras revistas científicas lidas por pesquisadores não têm uma tiragem mensal. Sobretudo aquelas especializadas; não falo de revistas como Science e Nature. Quando um cientista lia essas revistas todos os meses, ou a cada tres ou seis meses, ele tinha uma visão como em um colóquio. Ele não vai participar de um colóquio todas as semanas mas a cada tres ou seis meses, para atualizar-se sobre o estado da pesquisa em sua área. Ora, atualmente a ligação com a evolução do conhecimento não se faz mais a cada tres ou seis meses, mas é cotidiana. Ou seja, passamos de uma comunicação discreta de etapa em etapa para uma comunicação contínua de todos os dias, feita o tempo todo. Ela não se dá somente pelas comunicações da web. Ela ocorre freqüentemente por meios invisíveis, como, por exemplo, o correio eletrônico. Mas o segundo aspecto do que você mencionou agora há pouco é a desintermediação. Ou seja, os cientistas não são mais obrigados a passar por uma revista científica para explicar aos outros suas descobertas, hipóteses, idéias, experiências, etc. Podem fazê-lo diretamente entre si.

Essa situação não é apenas própria à ciência mas a muitas outras comunidades. Por exemplo, no comércio, um pequeno produtor que não tinha acesso a grandes canais de distribuição, hoje, se fizer corretamente sua publicidade na web, encontrará compradores diretamente. Em relação à literatura, não se precisa mais passar por um editor. Podemos difundir os textos para um vasto público internacional. Não exatamente difundir mas colocá-los à disposição dos outros. As pessoas que se interessam poderão encontrá-los. Para a música acontece o mesmo. Para os documentos de vídeo, também. Em pouco tempo, a televisão, uma grande parte da televisão vai passar pela rede, ou seja, pelo ciberespaço. Não vai mais ser organizada em programações de horário. Vai haver uma vasta escolha de programas. Alguns serão propostos por grandes grupos de comunicação, outros, por indivíduos, pessoas individualmente desconhecidas. Tudo vai se misturando. Não seremos mais obrigados a passar por um distribuidor que fará a seleção, que decidirá o que vai ser público e o que não vai ser, ou quais as coisas boas e as que não são boas. Cada um terá que decidir por sua própria conta o que é bom e o que não é. As pessoas talvez se organizem, aqueles que têm o mesmo gosto, para escolher por nós o que é bom e o que não é, pois também não podemos perder muito tempo. Como os grupos são muito diferentes, o público, ou seja, a tendência que já conhecemos da diferenciação dos públicos vai continuar e vai tender mesmo a se acelerar, até a personalização, a individualização completa do consumo da informação.

FF Por causa da internet, fala-se muito hoje em interatividade. Isso soa até como uma palavra de ordem. É preciso ser interativo com qualquer coisa. Afinal, o que é interatividade?

PL Há vários graus de interatividade, Há a interatividade um indivíduo com um programa de informática e aqui a interatividade pode ser resumida de modo simples. O programa pede que você realize certas ações e você tem que escolher entre várias ações. Conforme as suas decisões, o programa vai responder de uma maneira ou de outra. Isso é muito simples. Quando você lê um livro, a página seguinte não se altera em função da maneira como você a interpreta. Já quando estiver diante de um documento interativo, dependendo da sua interpretação de uma questão ou de outra coisa que lhe for perguntada, a tela seguinte não será a mesma. Portanto, você contribui parcialmente para a definição da mensagem que você está recebendo. Isso, grosso modo, é a interativadade básica. Agora, podemos conceber uma interatividade ainda mais complexa na qual é apresentado um ambiente interativo que compartilhamos com outras pessoas. Aqui, pode haver uma construção coletiva do universo interativo, onde as pessoas estão em relação umas com as outras. São os mundos virtuais multiparticipativos. Hoje há, cada vez mais uma demanda muito forte por esse tipo de universo.

 

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