DA REPRESENTAÇÃO À SIMULAÇÃO
EVOLUÇÃO DAS TÉCNICAS E DAS ARTES DA FIGURAÇÃO
Edmond Couchot
A evolução das técnicas de figuração indica, desde o Quattrocento,
a constância de uma pesquisa quase obsessiva que visa automatizar cada vez
mais os processos de criação e reprodução da imagem. Essa preocupação começou
primeiro entre pintores e artistas que eram também, de fato, na época experimentados
engenheiros, tais como Brunelleschi, Alberti ou da Vinci. Os efeitos da automatização
da imagem, obtidos com o aperfeiçoamento da perspectiva de projeção central,
foram além dos limites do campo pictórico e se estenderam a outros domínios,
tais como as matemáticas, a física e a mecânica, e mesmo a indústria. Essa
busca de um automatismo 1
que liberasse cada vez mais o olhar e a mão foi retomada no século XIX por
inventores, muitos dos quais também pintores: os fotógrafos. Graças a eles,
a imagem gerada automaticamente na câmara escura inscrevia-se definitivamente
em seu suporte sem nenhuma intervenção manual. Depois da fotografia e do cinema,
o qual permitiu o registro automático do próprio movimento e sua reconstituição
visual, as técnicas tornaram-se mais e mais complexas e a investigação sobre
o automatismo prosseguiu, principalmente através de engenheiros ou técnicos.
Nasceu assim a televisão, que acrescentou ao cinema a capacidade de registrar,
transmitir e reproduzir simultânea e quase instantaneamente uma imagem em
movimento.
Essa decomposição analítica da imagem fixa em elementos lineares descontínuos
e paralelos, realizou-a pela primeira vez Caselli, entre 1855 e 1861. O pantelégrafo,
máquina elétrica que funciona sob o duplo princípio da varredura e da sincronização
- sob esse aspecto, incontestável antepassado da televisão -, conseguia transmitir
imagens em contorno, entre Paris e Lyon, em quinze minutos.2
Os pintores contribuíram mais uma vez, a seu modo, para essa pesquisa. O Impressionismo
e sobretudo o Pós-Impressionismo, apoiando-se na técnica do divisionismo e
do pontilismo, tentaram sintetizar as formas coloridas da pintura a partir
da mistura (ótica) de pinceladas de pigmentos puros, pontos de cores justapostos
funcionando como constituintes, elementares. Mas essa decomposição analítica
da imagem, totalmente dependente da mão e do olho, não era ainda automatizável.
Foi preciso que se inventasse a trama em fotogravura (técnica halftone)
para que se chegasse a uma decomposição automática satisfatória, ao menos
tecnicamente, das imagem em pontos. A trama tornava possível a reprodução
(não a transmissão) de uma foto em branco e preto com matizes. Os pontos da
fotogravura, contudo, não eram ainda elementos verdadeiramente primeiros,
atômicos, pois suas formas variavam num continuum entre o puro ponto
negro e o puro ponto branco.
Ao decompor a imagem móvel, obtida por projeção ótica sobre o fundo fotossensível
de uma câmera eletrônica, em finas linhas paralelas, semelhante ao pantelégrafo,
a televisão tornava-se capaz de analisar cada ponto de cada linha da imagem
e de reconstituir a imagem sob a forma de uma espécie de mosaico luminoso.
Esse mosaico era composto de pontos elementares discretos, vermelhos, verdes
e azuis (os luminósforos) que, por síntese aditiva, podiam reconstituir qualquer
cor do espectro visível. Mas nem sempre era possível controlar o ponto de
imagem com perfeita exatidão, agir por exemplo sobre um único ponto, independentemente
dos outros.
Faltava ao mosaico eletrônico ser completamente ordenado, ao ponto da imagem ser numerizada, isto é, indicável exatamente na tela através de coordenadas espaciais e cromáticas definidas por um cálculo automático. Essa última etapa na busca do menor elemento constituinte da imagem foi superada graças ao computador. O computador permitia não somente dominar totalmente o ponto da imagem - pixel - como substituir, ao mesmo tempo, o automatismo analógico das técnicas televisuais pelo automatismo calculado, resultante de um tratamento numérico da informação relativa à imagem. A procura do constituinte último da imagem concluía-se com o pixel, ponto de convergência, se pode dizer isso, de duas linhas de investigação tecnológica: uma que procurava o máximo de automatismo na geração da imagem; outra, o domínio completo de seu constituinte mínimo. A imagem é, daí por diante, reduzida a um mosaico de pontos perfeitamente ordenado, um quadro de números, uma matriz. Cada pixel é um permutador minúsculo entre imagem e número, que permite passar da imagem ao número e vice-versa. 3 Ao mesmo tempo, o pixel lançava as técnicas numéricas de figuração numa lógica em total ruptura com a lógica figurativa subjacente à imagem gerada até então pelos procedimentos óticos (ótico-químicos e ótico-eletrônicos). A hibridação inesperada de um calculador eletrônico e de uma tela de televisão iria provocar, no universo das imagens, a mutação mais radical desde o aparecimento - há mais ou menos uns vinte e cinco mil anos - das primeiras técnicas de figuração.
LÓGICAS FIGURATIVAS
Pode-se chamar a lógica figurativa ótica de uma morfogênese por projeção.
Na camara obscura, a projeção se dá por meio de um raio luminoso que emana
do objeto a ser figurado e vem bater no fundo da caixa preta através do orifício
mínimo que desempenha a função de centro de projeção. No dispositivo de anteparo
de vidro de Leonardo da Vinci ou do tecido, transparente e estendido, de Alberti,
a projeção se faz por meio de um raio imaginário que parte do olho e se reúne
a cada ponto do objeto, depois de ter interceptado o plano da vidraça ou do
pano (na verdade, esse raio percorre o caminho inverso ao da luz). O olho
funciona então como centro de projeção e deve permanecer necessariamente imóvel.
O pintor traça manualmente a lápis os contornos do objeto, percebido através
do anteparo de vidro ou do tecido, nesses suportes. O princípio da fotografia
permanece idêntico ao da camara obscura, com a diferença que o orifício é
substituído por uma objetiva, comportando em geral inúmeras lentes, sendo
o fundo polido substituído por uma película ou placa sensível à luz, o que
permite o registro automático da imagem. Quanto à construção geométrica de
uma figura tridimensional imaginária a ser rebatida no espaço bidimensional
de um quadro, ela se apresenta como um sistema isomorfo em relação aos procedimentos
precedentes (por exemplo, as operações perspectivas do quadrado de base de
Alberti) ou, mais tarde, os da geometria projetiva.4
A morfogênese por projeção implica sempre a presença de um objeto real pré-existente
à imagem. Cria uma relação biunívoca entre o real e sua imagem. A imagem se
dá, então, como representação do real.5
A imagem traz do real a marca luminosa, permanente, morfogeneticamente estável,
capaz de perdurar no tempo e ser apresentada de novo - re-presentada - indefinidamente.
A imagem estabelece uma junção entre dois momentos do tempo, aquele em que
foi captada (feita a mão ou registrada automaticamente pela câmera fotográfica)
e aquele em que é contemplada. A lógica figurativa ótica estabelece, portanto,
uma relação particular entre o espaço e o tempo, torna-os homogêneos. Representar
é poder passar de um ponto qualquer de um espaço em três dimensões a seu análogo
(seu "transformador") num espaço de duas dimensões. Mas estabelece também
uma relação imediata entre o objeto a figurar, sua imagem e quem organiza
o encontro de ambos. A Representação alinha, no espaço e no tempo, o Objeto,
a Imagem e o Sujeito. Ela opera, como diz Panofski, "a transposição do espaço
psicofisiológico em espaço matemático, em outras palavras, a objetivação do
subjetivo."6
A relação entre os três termos não muda quando se trata de um objeto - personagem,
cena, paisagem - totalmente imaginado pelo pintor: ele pinta esse objeto como
se estivesse realmente diante dele; é a esse preço que dará ao espectador
a ilusão do real, objetivo permanente da Representação.
O aperfeiçoamento, em precisão e rapidez, da morfogênese da imagem e de seu
registro, impulsionou toda a dinâmica em busca do automatismo analógico. A
perspectiva foi um momento decisivo na história desse automatismo. Concretamente,
permitiu aos pintores seja reproduzirem à mão, na superfície do quadro, por
meio de engenhos diversos (câmara obscura, anteparo de vidro, pano semitransparente
esticado, aparelhos com direcionamento ótico-mecânico, "perspectivadores",
etc.) os contornos de um objeto ou de uma cena pertencente ao mundo real,
seja reconstituir, devido a um jogo de novas regras geométricas, na mesma
superfície, uma cena ou um objeto imaginários, dando uma ilusão precisa de
profundidade.
A fotografia inscreveu-se exatamente no caminho aberto pelo Renascimento.
Foi apenas, talvez, um aperfeiçoamento da câmara obscura, mas esse aperfeiçoamento
permitiu estender a automatização até a própria inscrição da imagem. Enquanto
era necessário a um pintor um longo tempo para refazer à mão, no fundo de
uma camara obscura ou num anteparo, os contornos da imagem a ser reproduzida,
bastavam algumas frações de segundos para capturar a imagem no suporte argêntico
da fotografia. À automatização do registro da fotografia ainda acrescentou-se,
graças à invenção do negativo, a automatização da reprodução da imagem original.
Com a fotografia, a própria Representação se automatiza. Essa automatização,
paradoxalmente, em vez de liberar do real a fotografia, como pôde fazê-lo
a perspectiva no quadro mais "realista", jamais conseguiu que se descolasse
dele ("A fotografia adere ao real", dizia Barthes). Marca instantânea do real,
a foto prende-se para sempre ao real através dos fios invisíveis da luz. Da
mesma forma, traço de um instante privilegiado - a pose que reuniu no mesmo
lugar o objeto a ser fotografado, sua imagem e o fotógrafo -, ela adere também
ao tempo, inscreve-se em seu fluxo, em sua cronicidade. A foto reenvia perpetuamente
(e por vezes deliciosamente) ao presente da pose, num ir e vir vertiginoso
entre o presente-presente daquele que a contempla e o presente-passado da
pose. De maneira geral, todas as operações da figuração fundadas na ótica
geram imagens que "colam" ao real, imagens das quais cada ponto está ligado
ao real pela lógica projetiva da representação. Imagens das quais cada ponto
registra e fixa o Real.
MODELOS MORFOGENÉTICOS
As técnicas figurativas não são apenas meios para criar imagens de um tipo
específico, são também meios de perceber e de interpretar o mundo. Propõem
verdadeiros modelos morfogenéticos e destes modelos decorrem suas propriedades
lógicas.7
Desse modo, a lógica da Representação procede principalmente do modelo perspectivista,
capaz ao mesmo tempo de reproduzir o mundo e de fornecer dele uma "visão"
particular, no mais amplo sentido. Como se viu, esse modelo geral que fixava
o "quadro espacial da representação", segundo a expressão de Pierre Francastel,
podia ser tecnológico (assim como a totalidade dos aparelhos usados pelos
pintores), geométrico (de natureza abstrata), concorrendo os dois aspectos
para uma concepção comum e homogênea do mundo e de sua representação.8
Ambos aderiram também, de uma certa maneira, ao real. A posição do olho no
cimo da pirâmide visual, o alinhamento do sujeito, da imagem e do objeto co-presentes
no ato da representação pictórica eram parte integrante do real. Da mesma
forma, os traçados reguladores, as construções do quadrado de base, do ponto
ou dos pontos de fuga, se não tinham a mesma espessura de realidade concreta
dos dispositivos tecnológicos, continuavam sendo, se não pintura, pelo menos
traços materializados consubstanciais à imagem.
As técnicas fotográficas, fotomecânicas, cinematográficas e televisuais que
vieram depois não somente alteraram o modelo vigente desde o Quattrocento,
como o levaram à máxima eficácia: conquista do movimento com o cinema, conquista
da instantaneidade e da simultaneidade da geração de imagem, de seu registro
e de sua transmissão com a televisão, que suprime o prazo de registro da imagem
próprio ao cinema e opera uma aproximação definitiva entre a Imagem e o real,
o momento de sua captura e o momento de sua re-presentação. São idênticos,
contudo, os processos morfogenéticos de formação de imagem a partir de uma
emanação luminosa, idêntica à aderência ao real. (Nesse sentido, a
televisão vai além de representar: ela sobre-representa). A televisão faz
com que a imagem se cole diretamente ao real, através do espaço e do tempo,
mas essa contigüidade só é possível porque o enquadramento espacial e temporal
(automático) da imagem 9,
imposto pelas tecnologias da Representação, não se modificou. Lembremos que
os princípios da televisão foram concebidos em meados do século XIX.
A ORDEM VISUAL NUMÉRICA
Com as tecnologias numéricas, a lógica figurativa muda radicalmente e com
ela o modelo geral da figuração. Ao contrário do que se poderia prever, o
pixel, sendo um instrumento de controle total, torna na verdade bem
mais difícil a morfogênese da imagem. Enquanto para cada ponto da imagem ótica
corresponde um ponto do objeto real, nenhum ponto de qualquer objeto real
pré-existente corresponde ao pixel. O pixel é a expressão
visual, materializada na tela, de um cálculo efetuado pelo computador, conforme
as instruções de um programa. Se alguma coisa pré-existe ao pixel
e à imagem é o programa, isto é, linguagem e números, e não mais o real.10
Eis porque a imagem numérica não representa mais o mundo real, ela o simula.
Ela o reconstrói, fragmento por fragmento, propondo dele uma visualização
numérica que não mantém mais nenhuma relação direta com o real, nem física,
nem energética.
A imagem não é mais projetada, mas ejetada pelo real, com força bastante para
que se liberte do campo de atração do Real e da Representação. A realidade
que a imagem numérica dá a ver é uma outra realidade: uma realidade sintetizada,
artificial, sem substrato material além da nuvem eletrônica de bilhões de
micro-impulsos que percorrem os circuitos eletrônicos do computador, uma realidade
cuja única realidade é virtual. Nesse sentido, pode-se dizer que a imagem-matriz
digital não apresenta mais nenhuma aderência ao real: libera-se dele. Faz
entrar a lógica da figuração na era da Simulação. A topologia do Sujeito,
da Imagem e do Objeto fica abalada: as fronteiras entre esses três atores
da representação se esbatem. Eles se desalinham, se interpenetram, se hibridizam.
A imagem toma-se imagem-objeto, mas também imagem-Iinguagem, vaivém entre
programa e tela, entre as memórias e o centro de cálculo, os terminais; toma-se
imagem-sujeito, pois reage interativamente ao nosso contato, mesmo a nosso
olhar: ela também nos olha. O sujeito não mais afronta o objeto em sua resistência
de realidade, penetra-o em sua transparência virtual, como entra no próprio
interior da imagem. O espaço muda: virtual, pode assumir todas as dimensões
possíveis, até dimensões não inteiras, fractais. Mesmo o tempo flui diferente;
ou antes, não flui mais de maneira inelutável; sua origem é permanente "reinicializável":
não fornece mais acontecimentos prontos, mas eventualidades. Impõe-se uma
outra visão do mundo. Emerge uma nova ordem visual.
A semelhança da imagem ótica, a imagem digital recorre a modelos morfogenéticos.
Mas os modelos da simulação numérica pertencem a uma outra ordem, diferente
dos modelos da representação ótica. Não são mais nem materiais, concretos,
maquínicos (como a camara obscura), nem com substanciais à imagem (como os
traçados reguladores da perspectiva). São abstratos e provêm do domínio científico:
das chamadas ciências "duras", como as matemáticas, a física, a química, as
ciências da vida, como a botânica, a medicina, a neurologia, mas também das
ciências humanas, como a psicologia cognitiva, a lingüística etc. Por que
tão grande número de modelos para mostrar, afinal, apenas imagens? Porque
a lógica da Simulação não pretende mais representar o real com uma imagem,
mas sintetizá-lo em toda sua complexidade, segundo leis racionais que o descrevem
ou explicam. Procura recriar inteiramente uma realidade virtual autônoma,
em toda sua profundidade estrutural e funcional. Dessa maneira, criar a imagem
(de animação) de um sol se pondo, num mar agitado por ondas, será recriar
numericamente um mundo virtual aonde os raios vêm se refletir na superfície
da água de acordo com as leis da próprias da luz, aonde as ondas se deslocarão
de acordo com as leis da hidrodinámica. Simular visualmente a evolução de
um cardume de peixes em seu meio natural será aplicar modelos de comportamento
animal capazes de explicar as mútuas interações entre os peixes, suas relações
a eventuais predadores, diversos tropismos etc.
A exemplo das técnicas figurativas óticas, as técnicas figurativas numéricas
são também interpretações do mundo, mas interpretações acentuadamente teorizadas,
argumentadas, formalizadas, mesmo quando não o são, em numerosos casos, segundo
os princípios da lógica formal e das matemáticas. Elas substituem o real "bruto",
originário - o real que a imagem ótica pretende representar -por um real secundário,
refinado, purificado no cadinho dos cálculos e das operações de formalização.
Não se trata mais, então, de fazer a imagem representar um real reorganizado
pela superfície do espelho, pelo orifício da câmera escura ou pela varredura
da câmera eletrônica. Não se trata mais de figurar o que é visível 11:
trata-se de figurar aquilo que é modelizável. Chega -se, nesse ponto, à nova
e fantástica potência da figuração numérica e, simultaneamente, a seus limites
uma vez que a imagem numérica só pode figurar aquilo que é modelizável.
O ARTISTA E SEUS MODELOS
As relações entre o artista e seus modelos sempre foram contraditórias e
conflituadas. Os modelos se impõem ao artista como regras reconhecidas e compartilhadas
a serem seguidas, fornecendo-lhe poderosos meios de criação e, através disso,
fixando limites a sua liberdade. Bastou que a perspectiva aparecesse para
os pintores não pararem de desviar ou distorcer seus princípios para melhor
submetê-los a seus, projetos.12
No entanto, entre o Quattrocento e o início do século XX, inúmeras escolas,
correntes, estilos artísticos floresceram e se extinguiram sem que, no conjunto,
o modelo morfogenético subjacente ao quadro espacial da Representação e sua
lógica figurativa tenha deixado de funcionar. Tratava-se essencialmente para
a pintura de imitar a natureza tal como esta se mostrava através do dispositivo
perspéctico, de imitá-Ia em suas formas e aparências (especulares) mas também
em sua verdade. Pintar obedecendo às leis da perspectiva era imitar a imagem
criada naturalmente pelo espelho e conformar-se, desta maneira, à verdade.
13
A imagem fotográfica também aparecerá como uma espécie de apoteose da Representação:
com ela, a própria natureza se auto-reproduzia e se imitava, não fazendo o
fotógrafo mais que propiciar o encontro entre a natureza e a câmera escura.
(Daí terem os pintores impressionistas buscado para a pintura um registro
pictórico mais arejado mas que não escapava da lógica da Representação: o
privilégio atribuído desde então à impressão primeira, originária, ao instante
quase sagrado no qual o pintor pousa seu olhar sobre o mundo).
As novas técnicas de figuração automática (cinema e televisão) não conseguiram
alterar o quadro espacial da representação clássica -a perspectiva e suas
imposições foto-geométricas -; elas não podiam fazê-lo, pois se inscreviam
na mesma lógica figurativa, mas os pintores cubistas sim. Colando no quadro
fragmentos do próprio real (pedaços de papel, jornais, tecidos, cartas de
baralho, cacos de espelho etc.), suprimindo qualquer ponto de vista privilegiado,
hierárquico, deram do real uma imagem fragmentada, partida, biplanar, mais
próxima da mão que do olho. Com o cubismo, tudo se passou como se os pintores
tivessem feito voar aos pedaços o anteparo de vidro de da Vinci, no qual o
mundo vinha projetar sua imagem ordenada. Como se o próprio real se projetasse
no plano do quadro para nele se esmagar, como se tendesse a incorporar-se
ou substituir-se à imagem, a inscrever, da maneira mais direta possível, sua
própria materialidade na tela, sem a mediação de qualquer emanação luminosa
organizada. Como se tratasse de apresentar o real e não mais de representá-lo.
E foi exatamente essa ambição que caracteriza a maior parte da arte depois
do início do século. A Representação cedia seu lugar, no domínio da arte,
(o da imagem não automática), à presentação.
Desde então a pintura não procura mais remeter a uma realidade comum, fora
dela mesma, a uma natureza e a sua verdade, ela se dedica essencialmente à
remeter à sua própria realidade, a sua própria substância, singular, temporária,
nem verdadeira nem falsa: presente, embora permaneça, ainda assim, na órbita
da Representação. A topologia do Sujeito, do Objeto e da Imagem não mudava
fundamentalmente: os três termos continuavam ainda em posição de confronto
14,
embora a distância entre o Objeto e a Imagem, instituída pelos dispositivos
óticos, tenha sido abolida. Tratava-se ainda para o artista de compor a partir
de modelos que lhe propunham uma projeção do real, distanciada ou imediata,
que exigiam que o real preexistisse à imagem, (no caso da representação perspectiva
ou fotográfica), ou que real e imagem coexístissem, como no caso da pintura
não figurativa ou abstrata, na qual o real figurado torna-se a própria pintura,
seu pigmento, sua matéria, sua textura.
UMA ARTE DE HIBRIDAÇÃO
No que, então, as técnicas de figuração numérica modificam alguma coisa na
arte? Elas o fazem na medida em que são empregadas para controlar todas as
imagens automáticas {fotografia, cinema, televisão) pois estas serão, a curto
ou médio prazo, transmutadas em números para poderem ser registradas, tratadas,
difundidas, conservadas, manipuladas:, o destino da imagem é daqui em diante
numérico. Essas técnicas não podem deixar de interessar artistas à procura
de novas experiências e de novas investigações perceptíveis. Aliás, elas já
conquistaram alguns desses artistas. Ora, enquanto as técnicas óticas os levaram
a representar o real ou a questionar essa representação e a recusar indefinidamente
essa alternativa, as técnicas de síntese os convidam, a partir de agora, a
simulá-Io. Não se trata mais para eles de aplicar um modelo relativamente
unitário, ligado diretamente ao mundo, funcionando em analogia profunda, em
"simpatia " com o real. 15
Trata-se de compor através de um universo de modelos cada vez mais numerosos,
cada vez mais sofisticados, cada vez mais formalizados e racionalizados, mas
também cada vez mais fragmentados e especializados. A dificuldade não provém
apenas de serem esses modelos de natureza essencialmente matemática, logo
pouco acessível ao comum dos mortais, sobretudo aos artistas. É preciso, quanto
a isso, dissipar um mal-entendido.
Corno se pôde constatar, nem todos os modelos de simulação numérica são de
natureza matemática. Se devem ser formalizados com rigor para serem aduzidos
em linguagem de computador e funcionarem, essa formalização não passa necessariamente,
ao contrário de uma idéia amplamente difundida, pela via real das matemáticas.
A submissão de modelos numéricos unicamente às matemáticas e à lógica formal
é relativa. Certos modelos utilizados em inteligê~cia.artificial {simulação
de raciocínio)_dirigem-se resolutamente para as ciências humanas.16
A arte numérica não e uma arte do cálculo. Além disso, a própria noção de
modelo evoluí com o numérico. Os modelos de simulação numérica podem ser dotados
de certa plasticidade, tornam-se suscetíveis de modificação, dependendo das
exigências do experimentador. Este vai poder agir sobre o processamento do
programa com freqüência "em tempo real" (quase instantaneamente) e mudar alguns
de seus parâmetros, alguns dados, algumas instruções.
Através do modo interativo ou conversacional, o modelo abre-se ao mundo exterior
e deixa de funcionar em circuito fechado. É possível então, agindo sobre a
imagem, agir sobre o próprio modelo e, em decorrência disso, sobre a realidade
virtual por ele simulada. A interatividade permite testar o modelo, modulá-lo.
Permite que o experimentador, como diz, Mario Borillo, "participe com a parte
implícita ou ambígua de seu saber isto é, uma parte não formalizada de seu
discurso científico - na elaboração formal global que é concretizada pela
informática".17
Certamente, a interatividade agiliza e enriquece bastante a relação homem/máquina,
possibilitando um controle permanente dos modelos ou pelo menos um controle
frequente, já que uma eficaz interação no domínio da imagem exige grande poder
de cálculo -mas ela não modifica a natureza dos modelos que permanecem interpretações
argumentadas do mundo, filtradas pelo conhecimento científico. Se a Representação
buscava, ao penetrar na natureza para além das aparências, remontar até o
inteligível para, por sua vez, torná-lo visível, a Simulação só pode tornar
visível o que de antemão é inteligível. Ela não tolera opacidade alguma, nenhum
mistério. No momento em que o virtual se substitui ao real, a Simulação exclui
toda comunhão entre o real e o artista. A própria inteligência do homem, sua
faculdade de raciocinar, de aprender, talvez sua emotividade (pelo menos de
alguns de seus mecanismos) começam a ser modelizadas, programadas. A automatização
ganha o próprio pensamento.
O problema para o artista que se limita a manipular instrumentos se não inteligentes,
pelo menos oriundos das tecno-ciências, é o de mudar a destinação originária
desses modelos que são concebidos para produzir conhecimento e não arte, de
transformar as certezas das ciências em incertezas da sensibilidade, em gozo
estético, e esse excesso de clareza, em sombra. De fazer acordos, também,
com uma e com outra. Ele terá de transcender os modelos colocados à sua disposifccedil;ão,
ou que ele próprio imagina, ir além de sua acumulação tecnológica, não exibir
-como se vê muitas vezes em manifestações dedicadas à imagem digital, em que
é raríssima a presença de autênticos criadores -puras técnicas de modelização,
mesmo se entupidas de inteligência artificial.18
Uma soma de modelos não resulta em obra de arte. Os modelos numéricos são
para o artista meios poderosos e limitadores: ela terá que arrancá-Ios de
sua performatividade científica e técnica, interpretá-los e traduzi-los em
seu próprio sistema simbólico.
Arte dos modelos de simulação, sem dúvida, a arte numérica é antes de tudo
uma arte da Hibridação. Hibridação entre as próprias formas constituintes
da imagem sempre em processo, entre dois estados possíveis, - diamórficos
19, meta-estáveis, autogerados.
Hibridação entre todas as imagens, inclusive as imagens óticas, a pintura,
o desenho, a foto, o cinema e a televisão, a partir do momento em que se encontram
numerizadas. Hibridação entre a imagem e o objeto, a imagem e o sujeito -a
imagem interativa é o resultado da ação do observador sobre a imagem -, ele
se mantém na interface do real e do virtual, colocando-as mutuamente em contato.
Hibridação ainda entre o universo simbólico dos modelos, feito de linguagem
e de números, e o. universo instrumental dos utensílios, das técnicas, entre
logos e techné. Hibridação enfim entre o pensamento tecno científico, formalizável,
automatizável, e o pensamento figurativo criador, cujo imaginário nutre-se
num universo simbólico da natureza diversa, que os Modelos nunca poderão anexar.
Desta forma, a ordem numérica.torna possível uma hibridação quase orgânica
das formas visuais e sonoras, " do texto e da imagem, das artes, das linguagens,
dos saberes instrumentais, dos modos de pensamento e de percepção. Esse possível
não é forçosamente provável: tudo depende da maneira pela qual especialmente
os artistas farão com que as tais tecnologias se curvem a seus sonhos.
[Tradução de Rogério Luz]
NOTAS
1
Trata-se de um constituinte físico, perceptível, e não de um constituinte
semântico.
2
Ver a respeito e, mais em geral, quanto à passagem das técnicas óticas às
técnicas numéricas: Edrnond Couchot "lmages, de 1'optique au numérique".
Paris: Hermès, 1988.
3
Uma foto, um desenho, uma pintura, um filme ou um vídeo podem ser, porprio,
numerizados, o que permitirá tratá-Ios também através do cálculo, como ver-
ras imagens digitais. Mas a partir do momento em que a imagem é numerizada,
ligação direta com o real desaparece.
4
Sobre isso, cf, Erwin Panofski, La perspective comme forme symbolique, Paris,
Minuit, 1975.
5
No caso, por exemplo, do retrato pintado de uma personagem, esse instante
- constituído, na verdade, por uma soma de instantes - será aquele em que
essa personagem veio posar em pessoa para o pintor .
6
Op, cit., p.159. Sobre as articulações do Sujeito, do Objeto e da Imagem,
ver E. Couchot, "Sujet, Objet, lmage", in Nouvelles images, nouveau réel,
Cahiers Intemationaux de Sociologie, v, LXXXll, Paris, PUF, 1987.
7
Seria necessário distinguir os modelos estritamente morfológicos dos modelos
que incluem conteúdos simbólicos (remetendo à mitologia, religião, história,
sociedade sentimentos etc), embora um modelo morfológico tal como a perspectiva
possa ter "ressonâncias" simbólicas, como bem demonstrou Panofski na obra
citada. Existem também modelos "distributivos" que regulam a maneira pela
qual as imagens são distribuídas -socializadas -em determinada sociedade (
difusão, conservação, reproducão, etc) e que produzem efeitos sobre a própria
morfogênese das imagens.
8
Apesar de diferentes interpretações teóricas da perspectiva, apaixonadas mas
em geral pouco importantes, elaboradas pelos pintores até meados do século
XVll.
9
Em contrapartida, ele se modificou, na pintura, desde o início do século,
acarretando uma mutação estética em relação à Representação que se prolongou
até as artes visuais usuárias das técnicas óticas (fotografia, cinema, televisão).
10
Isso é verdade também para qualquer imagem gerada por procedimentos óticos
tradicionais ou manuais, tais como a pintura, uma vez que essas imagens são
numerizadas .
11
Muitas vezes com intenção de ir além do visível, de exprimir o invisível,
o inteligível.
12
Surgiram inúmeras teorias do ponto de fuga, do ponto de vista, do ponto de
distãncia, a perspectiva curvilínea, a perspectiva axonométrica, a anamorfose
etc.
13
Da Vinci considerava o espelho o mestre dos pintores.
14
O ponto de vista não é suprimido, mas, ao contrário, multiplicado, o que faz
com que perca a centralidade.
15
Modelo ainda majoritário pois é pressuposto, atualmente, por todas as técnicas
de figuração ótica (fotografia, cinema e televisão) -ocupando as artes plásticas
uma posição marginal, dominada por uma lógica da presentação que conduz à
aderência sem distanciamento ao real, às suas peripécias, aos seus flashes,
aos acontecimentos, à sua encenação mediática (a cena tela eletrônica).
16
Ver sobre o assunto Jean-Gabriel Ganascia, L 'âme-machine, Les enjeux de I'intelligence
artificielle, Paris, Seuil, 1990, cap.3.
17
L'Informatique pour les sciences de l'homme, Pierre Mardaga, 1984, p.31-32.
18
Não são obras o que se expõe, mas demonstrações técnicas, as "démos", como
dizem (em francês) os C'pecialistas. Quando um anunciante decide realizar
um filme em imagens digitais, pela qual paga muito caro, essas imagens têm
por único objetivo traduzir, não uma bela e simples idéia, mas o aspecto high
tech do procedimento e todo um jogo estereotipado de símbolos que lhe são
atribuídos, é preciso exorcizar "Ie démon de Ia démo!" (o demônio das "démos"!)
19
Nesse sentido vai-se da metáfora, que é uma transposição da coisa, imutável,
à metamorfose ou, mais precisamente, à diamorfose ou movimento do intervalo.
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