CADERNOS DO CEAM Vol. 17, Fevereiro 2005, pp. 9-22. (Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares da Universidade de Brasília, UnB)
A
Relação Rural/Urbano no Desenvolvimento Regional
José
Eli da Veiga
http://www.econ.fea.usp.br/zeeli/
Este texto é uma síntese de quatro recentes esforços do autor na busca da necessária clarificação sobre os sentido atual das noções de “rural” e “urbano”, sem a qual dificilmente surgirão programas e redes de pesquisadores mais voltados aos vínculos urbano-rurais do que ao estudo especializado - e geralmente isolado - de apenas um desses dois componentes. A partir de uma discussão sobre os possíveis destinos da ruralidade no processo de globalização, e de uma reavaliação da dimensão rural do Brasil, o texto reafirma a atualidade da contradição urbano-rural e chama a atenção para suas mais evidentes implicações históricas e teóricas.
1. Introdução
Sob o prisma do desenvolvimento regional, a abstrata
relação rural/urbano se manifesta em pelo menos três tipos básicos de situações
concretas: a) a de regiões essencialmente urbanas, como é o caso das áreas
metropolitanas ou protometropolitanas; b) a de regiões essencialmente rurais,
quase sempre remotas, nas quais os ecossistemas originais foram preservados ou
passam a ser conservados; e c) a de numerosas regiões intermediárias, ou
ambivalentes, nas quais são extremamente heterogêneas as participações relativas
de ecossistemas parcialmente alterados e ecossistemas dos mais artificializados,
como são os casos das aglomerações, cidades, e mesmo certas
vilas.
A esses três principais tipos concretos de “espaços
de lugares” sobrepõem-se cada vez mais inúmeros “espaços de fluxos”[1],
fenômeno que foi intensificado nas recentes fases do processo de globalização.[2]
Se, por um lado, pode ser fácil entender e descrever os fluxos entre regiões
essencialmente urbanas e regiões essencialmente rurais, por outro, também é
certo que aconteça exatamente o contrário com a complexidade dos vínculos entre
esses dois extremos e as áreas rurais mais acessíveis e adjacentes a
aglomerações urbanas. Trata-se de um problema ainda obscuro, que exigirá muita
pesquisa interdisciplinar antes que sejam vislumbradas conclusões que realmente
possam fazer avançar o conhecimento científico sobre o desenvolvimento regional.
E, no Brasil, essas investigações exigem uma clarificação preliminar das
próprias noções de “rural” e “urbano”, sem a qual dificilmente surgirão
programas e redes de pesquisadores mais voltados aos vínculos urbano-rurais do
que ao estudo especializado - e geralmente isolado - de apenas um desses dois
componentes. Por isso, as considerações aqui propostas constituem uma síntese de
quatro recentes esforços do autor na busca dessa almejada clarificação.[3]
2. Destinos
da ruralidade na globalização
Na atual etapa da globalização, a ruralidade dos países avançados não desapareceu, nem renasceu. O mais completo triunfo da urbanidade engendra a valorização de uma ruralidade que não está renascendo, e sim nascendo. Nos últimos vinte anos tornou-se cada vez mais forte a atração pelos espaços rurais em todas as sociedades mais desenvolvidas. Mas esse é um fenômeno novo, que pouco ou nada tem a ver com as relações que essas sociedades mantiveram no passado com tais territórios. É uma atração que resulta basicamente do vertiginoso aumento da mobilidade, com seu crescente leque de deslocamentos, curtos ou longos, reais ou virtuais. A cidade e o campo se casaram: enquanto ela cuida de lazer e trabalho, ele oferece liberdade e beleza.[4]
Nesse contexto, os
desempenhos econômicos e sociais das áreas rurais têm sido vistos como respostas
locais à globalização. A explicação para o sucesso ou insucesso sempre se volta
a interdependências entre diversos fatores-chave do processo de desenvolvimento
que estão inextricavelmente ligados às oportunidades e ameaças colocadas pela
globalização. Quais seriam, então, essas oportunidades e ameaças que a atual
globalização oferece à ruralidade?
Há pelos menos duas
grandes dimensões da globalização contemporânea que atuam de forma contraditória
sobre os possíveis destinos das áreas rurais. A dimensão econômica – que envolve
as cadeias produtivas, comércio e fluxos financeiros – age essencialmente no
sentido de torná-las cada vez mais periféricas, ou marginais, no âmbito daquilo
que é chamado de “geografias da centralidade”. Ao lado das novas hierarquias
regionais há vastos territórios que tendem a se tornar cada vez mais excluídos
das grandes dinâmicas que alimentam o crescimento da economia global.
Simultaneamente, a dimensão ambiental – que envolve tanto as bases das
amenidades naturais, quanto fontes de energia e biodiversidade – age
essencialmente no sentido de torná-las cada vez mais valiosas à qualidade da
vida, ou ao bem-estar. Foi somente no período mais recente da globalização que o
alcance das responsabilidades cívicas sobre as condições naturais do
desenvolvimento humano passou a fazer parte da agenda das relações
internacionais.
A ação simultânea dessas
duas tendências parece estar tendo um duplo efeito sobre a ruralidade. Por um
lado, faz com que aquele rural “remoto”, ou “profundo” (que predomina nas
regiões que a OCDE classifica como “essencialmente rurais”), seja cada vez mais
conservado, mesmo que possa admitir várias das atividades econômicas de baixo
impacto. Por outro, faz com que o rural “acessível” (característico das regiões
que a OCDE classifica de “significativamente rurais”), abrigue novas dinâmicas
sócio-econômicas que fazem parte das tais “geografias da centralidade”. Vale
lembrar que foi a identificação de
constelações econômicas localizadas que venciam a recessão em áreas
relativamente rurais como a Toscana e Emilia-Romagna (Itália), Baden-Württemberg
(Alemanha), Cambridge (Inglaterra), Smäland, (Suécia), e até essencialmente
rurais, como West-Jutdland (Dinamarca), que levou um grupo de pesquisadores
ligados à OIT a se perguntar, desde meados dos anos 1980, se essa virtuosa
combinação entre eficiência e altos níveis de emprego poderia se tornar um
modelo para outras regiões.
É por não perceber esse
duplo caráter da influência exercida pela globalização sobre as áreas rurais que
alguns analistas são levados a subestimar, e até descartar, as possibilidades de
que elas possam reagir positivamente ao processo. No entanto, desde os anos
1960, a mais poderosa tendência locacional na distribuição do emprego e da
atividade econômica do Reino Unido foi a mudança de produção e dos postos de
trabalho das conurbações e grandes cidades para pequenas vilas e áreas rurais.
São dois os elementos
básicos da interpretação científica desse fenômeno: a) a capacidade de certas
áreas rurais atraírem os potenciais empreendedores devido às características
ambientais de residência; b) um dinamismo empreendedor voltado para mercados
emergentes, com muita inovação, e que explora as vantagens competitivas que
resultam de condições de vida e de trabalho das mais amenas, além de mais
estabilidade, qualidade e motivação da força de trabalho por menor custo. E não poderia ter deixado de causar
surpresa constatar que, em termos de inovação, as firmas situadas no rural mais
“remoto” não ficam atrás das que estão no rural mais
“acessível”.
Nas últimas décadas foram
as amenidades naturais que passaram a ser a principal vantagem comparativa das
áreas rurais dos Estados Unidos. Nos últimos 25 anos do século XX, as variações
da população rural estiveram altamente correlacionadas com amenidades naturais,
principalmente características de clima, de relevo e de acesso a águas (lagos,
rios e mar). As variações do emprego rural também mostraram forte correlação,
mas inferior, principalmente devido à influência de outros fatores concorrentes
que também criaram muito emprego em condados rurais americanos, como, por
exemplo, cassinos e prisões. E no processo de crescimento econômico de parte das
áreas rurais o principal fator foi a capacidade de atrair aposentados, trunfo
diretamente ligado às amenidades rurais.
Enfim, durante o século
XX, a dinâmica da economia rural dos países que mais se desenvolveram passou por
três grandes etapas. Na primeira ela era determinada por riquezas naturais como
solo fértil, madeira ou minérios. Essas vantagens comparativas não
desapareceram, mas foram sendo substituídas por outros fatores de produção, como
mão-de-obra barata, frouxa regulamentação e debilidade sindical. Foi assim que,
entre 1960 e 1980, a fatia rural do emprego fabril passou nos Estados Unidos de
um quinto para mais de um quarto. Todavia, nas últimas duas décadas do século XX
as principais vantagens comparativas voltaram a ser riquezas naturais, mas de
outro tipo. São os encantos do contexto rural – beleza paisagística,
tranqüilidade, silêncio, água limpa, ar puro – todas ligadas à qualidade do
ambiente natural. E a possibilidade de participar integralmente dessa terceira
geração do desenvolvimento rural é diminuta para localidades que antes tenham se
comprometido com sistemas produtivos primário-industriais de negativo impacto
ambiental. Além disso, as regiões mais dinâmicas do Primeiro Mundo – leia-se,
que geram mais postos de trabalho – não são as essencialmente urbanas, nem as
essencialmente rurais, mas sim aquelas nas quais a adjacência entre espaços
urbanos e rurais se faz mais intensa. Isto é, as regiões que a OCDE classificou
como significativamente rurais, nas quais entre 15 e 50% dos habitantes vivem em
localidades rurais.
Por se tratar de fenômeno inteiramente novo, esse
rural que tem sido chamado de “pós-industrial”, “pós-moderno”, ou
“pós-fordista”. Tal compulsão de usar o prefixo “pós” não deve ser desprezada,
pois reflete a necessidade de exprimir uma mudança que não é incremental, mas
radical. A atual ruralidade da Europa e da América do Norte não resulta de um
impulso que faz voltar fundamentos de alguma ruralidade pretérita, mesmo que
possa coexistir com aspectos de continuidade e permanência.
O que é novo nessa ruralidade pouco tem a ver com o
passado, pois nunca houve sociedades tão opulentas quanto as que hoje tanto
estão valorizando sua relação com a natureza. Não somente no que se refere à
consciência sobre as ameaças à biodiversidade ou à regulação térmica do planeta,
mas também no que concerne a liberdade conquistada pelos aposentados de
escolherem os melhores remanescentes naturais para locais de residência. Enfim,
o que a fase mais recente da globalização parece estar indicando é que a
ruralidade terá diversos destinos. Por enquanto, está claro que há diferenças
substanciais entre o rural “remoto” ou “profundo” (conforme se adote inclinações
anglo-saxônicas ou francesas) e o rural “acessível” ou
“adjacente”.
3. A
dimensão rural do Brasil
O Brasil é bem mais rural do que oficialmente se
calcula, pois a essa dimensão pertencem 80% dos municípios e 30% da população.
Um atributo que nada envolve de negativo, já que algumas das principais
vantagens competitivas do século XXI dependerão da força de economias rurais.
São estas as duas principais conclusões a que se chega quando se analisa a atual
configuração territorial do país tendo presente os mais recentes indicadores
sobre o destino da ruralidade nas sociedades humanas mais avançadas. Para isso é preciso superar a abordagem
dicotômica, mas sem cair na ilusão de que estaria desaparecendo a histórica
contradição urbano-rural.
Infelizmente,
o entendimento do processo de urbanização do Brasil é atrapalhado por uma regra
que é única no mundo. O país considera urbana toda sede de município (cidade) e
de distrito (vila), sejam quais forem suas características estruturais ou
funcionais. O caso extremo está no Rio Grande do Sul, onde a sede do município
União da Serra é uma “cidade” na qual o Censo Demográfico de 2000 só encontrou
18 habitantes.
Nada
grave se fosse extravagante exceção. No entanto, é absurdo supor que se trate de
algumas poucas aberrações, incapazes de atrapalhar a análise da configuração
territorial brasileira. De um total de 5.507 sedes de município existentes em
2000, havia 1.176 com menos de 2
mil habitantes, 3.887 com menos de 10 mil, e 4.642 com menos de 20 mil, todas
com estatuto legal de cidade idêntico ao que é atribuído aos inconfundíveis
núcleos que formam as regiões metropolitanas, ou que constituem evidentes
centros urbanos regionais. E todas as pessoas que residem em sedes, inclusive em
ínfimas sedes distritais, são oficialmente contadas como urbanas, alimentando
esse desatino segundo o qual o grau de urbanização do Brasil teria atingido
81,2% em 2000.
Muitos estudiosos procuraram contornar esse
obstáculo pelo uso de uma outra regra. Para efeitos analíticos, não se deveriam
considerar urbanos os habitantes de municípios pequenos demais, com menos de 20
mil habitantes. Por tal convenção, que vem sendo usada desde os anos 1950, seria
rural a população dos 4.024 municípios que tinham menos de 20 mil habitantes em
2000, o que por si só já derrubaria o grau de urbanização do Brasil para
70%.
A grande vantagem desse critério é a simplicidade.
Todavia, há municípios com menos de 20 mil habitantes que têm altas densidades
demográficas, e uma parte deles pertence a regiões metropolitanas e outras
aglomerações. Dois indicadores dos que melhor caracterizam o fenômeno urbano. Ou
seja, para que a análise da configuração territorial possa de fato evitar a
ilusão imposta pela norma legal, é preciso combinar o critério de tamanho
populacional do município com pelo menos outros dois: sua densidade demográfica
e sua localização. Não há habitantes mais urbanos do que os residentes nas 12
aglomerações metropolitanas, nas 37 demais aglomerações e nos outros 77 centros
urbanos. Nessa teia urbana, formada pelos 455 municípios dos três tipos de
concentração, estavam 57% da população em 2000. Esse é o Brasil inequivocamente
urbano.
O problema, então, é distinguir entre os restantes
5.052 municípios existentes em 2000 aqueles que não poderiam ser considerados
urbanos dos que se encontravam no “meio-de-campo”, em situação ambivalente. E
para fazer este tipo de separação, o critério decisivo é a densidade
demográfica. É ela que estará no âmago do chamado “índice de pressão antrópica”,
quando ele vier a ser construído. Isto é, o indicador que melhor refletiria as
modificações do meio natural que resultam de atividades humanas. Nada pode ser
mais rural do que as áreas de natureza praticamente inalterada, e não existem
ecossistemas mais alterados pela ação humana do que as manchas ocupadas por
megalópoles. É por isso que se considera a pressão antrópica como o melhor
indicador do grau de artificialização dos ecossistemas e, portanto, do efetivo
grau de urbanização dos territórios.
A maior dificuldade não está, contudo, na seleção
desse critério. A principal incógnita é a “dose”. Como saber qual seria o melhor
corte (ou os melhores cortes)? Isto é, qual seria, por exemplo, o limite de
densidade demográfica a partir do qual um território deixaria de pertencer à
categoria mais rural e passaria a alguma outra categoria? Durante muito tempo
foi considerado razoável 60 hab/km2 como um bom critério de corte. No entanto,
um exame dos dados do Censo de 2000 parece justificar uma atualização dessa
convenção para 80 hab/km2.
Quando
se observa a evolução da densidade demográfica conforme diminui o tamanho
populacional dos municípios, não há como deixar de notar duas quedas abruptas.
Enquanto nos municípios com mais de 100 mil habitantes, considerados centros
urbanos, a densidade média é superior a 80 habitantes por quilômetro quadrado
(hab/km2), na classe imediatamente inferior (entre 75 e 100 mil habitantes) ela
desaba para menos de 20 hab/km2. Fenômeno semelhante ocorre entre as classes
superior e inferior a 50 mil habitantes (50-75 mil e 20-50 mil), quando a
densidade média torna a cair, desta vez para 10 hab/km2. São esses dois “tombos”
que permitem considerar de pequeno porte os municípios que têm simultaneamente
menos de 50 mil habitantes e menos de 80 hab/km2, e de médio porte os que têm
população no intervalo de 50 a 100 mil habitantes, ou cuja densidade supere 80
hab/km2, mesmo que tenham menos de 50 mil habitantes.
Com
a ajuda desse dois cortes, estima-se que 13% dos habitantes, que vivem em 10%
dos municípios, não pertencem ao Brasil indiscutivelmente urbano, nem ao Brasil
essencialmente rural. E que o Brasil essencialmente rural é formado por 80% dos
municípios, nos quais residem 30% dos habitantes. Ao contrário da absurda regra
em vigor - criada no período mais totalitário do Estado Novo pelo Decreto-lei
311/38 - esta tipologia permite entender que só existem verdadeiras cidades nos
455 municípios do Brasil urbano. As
sedes dos 4.485 municípios do Brasil rural são vilarejos e as sedes dos 567
municípios intermédios são vilas, das quais apenas uma parte se transformará em
novas cidades.
O principal, contudo, não é a
abordagem instantânea da configuração territorial do Brasil. Mais importante é
ressaltar uma tendência que não deveria ser tão ignorada. Mesmo que se acrescente ao Brasil urbano
todos os municípios intermédios, considerando-os como vilas de tipo ambivalente
que poderão se transformar em centros urbanos, chega-se a um total de 1.022
municípios, nos quais residiam em 2000 quase 118 milhões de pessoas. Nesse
subconjunto ampliado, o aumento populacional entre 1991 e 2000 foi próximo de
20%, com destaque para as aglomerações não-metropolitanas e para os centros
urbanos. Em ambos houve crescimento demográfico um pouco superior. Mas não se
deve deduzir daí, como se faz com extrema freqüência, que todos os outros
municípios - de pequeno porte e características rurais - tenham sofrido evasão
populacional. Isto ocorreu na metade desses municípios. Todavia, em um quarto
deles houve um aumento populacional de 31,3%, bem superior, portanto, aos que
ocorreram no Brasil urbano. E mais do que o dobro do crescimento populacional do
Brasil como um todo, que foi de 15,5% no período intercensitário de
1991-2000.
Muito pouco se sabe sobre os fatores que levaram
esses 1.109 municípios com características rurais a terem um crescimento
populacional tão significativo. Há casos que se explicam pelo dinamismo
econômico de pequenas empresas, principalmente nas regiões Sul e Sudeste. Há
casos que se explicam pelo dinamismo político de Prefeituras, particularmente no
Nordeste. Mas se está muito longe de uma interpretação satisfatória sobre esse
fenômeno, espalhado por todo o território nacional.
Mesmo assim, o que já se sabe é suficiente para que
se rompa com a visão de que todo o Brasil rural é formado por municípios que
estão se esvaziando. Não é admissível que se considere a maior parte do
território brasileiro, 80% de seus municípios, e 30% de sua população como mero
resíduo deixado pela epopéia urbano-industrial da segunda metade do século 20.
Pior, não é possível tratá-lo como se nele existissem milhares de cidades
imaginárias.
Resumindo, esta primeira aproximação propõe que os
municípios brasileiros sejam separados em cinco escalões, dos quais os três
primeiros correspondem exatamente à caracterização da rede urbana e os dois
outros distinguem os municípios que ficaram fora da rede urbana como
“ambivalentes” e “rurais”, mediante combinação do tamanho e da densidade
populacionais. Resultam, portanto, cinco tipos de municípios cuja classificação
decorre do cruzamento de três critérios: a localização, o tamanho e a densidade.
Estimou-se, assim, que algo como 4,5 mil sedes de municípios brasileiros sejam
cidades imaginárias, o que parece ser agora confirmado por indicadores
funcionais.
Até seria possível aceitar que, no Brasil de 2001,
um autêntico núcleo urbano ainda não tivesse sua página na internet, não
dispusesse de provedor, não oferecesse ensino superior, e só escutasse rádio FM.
Mas será que faz algum sentido imaginar que eram cidades as sedes de município
que não tinham sequer lei de zoneamento, plano diretor, coleta de lixo
domiciliar, IPTU progressivo, varredura de ruas, manutenção de vias, e esgoto
(para nem falar de museu ou casa de espetáculo)? Será possível que seja apenas
uma mera coincidência o fato desses municípios terem poucos e esparsos
habitantes, além de estarem distantes de aglomerações?
Mesmo que esta hierarquia em cinco andares permita
concluir que o Brasil rural está concentrado em cerca de 4,5 mil municípios, nos
quais residem pouco mais de 30% de seus habitantes, isso ainda não é suficiente
para que se tenha uma boa visão da configuração territorial do país. Para tanto,
parece ser bem melhor a hierarquia de suas microrregiões.
É simples perceber que as 12 aglomerações
metropolitanas afetam diretamente 22 microrregiões, que as 37 outras
aglomerações afetam diretamente 41 microrregiões, e que os 77 centros urbanos
estão localizados no interior de 75 microrregiões. Bem mais difícil é
estabelecer distinções no interior das outras 420, isto é, de 75% das
microrregiões. É inevitável que se pergunte, então, qual poderia ser um bom
critério de classificação desse oceano de microrregiões que não abrigam sequer
um centro urbano. Provavelmente nunca haverá resposta consensual a esta questão,
pois ela depende dos inevitáveis pressupostos que condicionam qualquer
construção de tipologia. O fundamental, então, é que tais pressupostos sejam bem
explicitados na justificação do critério adotado.
Esta estimativa admite que a densidade demográfica
também é um critério razoável para diferenciar essas microrregiões que sequer
abrigam um centro urbano. Por isso, no exercício proposto mais adiante será
usado o mesmo critério de corte – 80 hab/km2 – para separar essas microrregiões
que não contêm sequer um centro urbano. Isto é, diferenciar as 420 microrregiões
distantes de aglomerações e de centros urbanos em duas categorias separadas por
esse corte de densidade demográfica.
Percebe-se facilmente que o comportamento
populacional do quarto tipo - formado por microrregiões que não têm centros
urbanos, mas que têm mais de 80 hab/km2 - é mais próximo do constatado para os
anteriores, onde há centros urbanos e aglomerações. Ou seja, essas poucas 32
microrregiões certamente têm significativo grau de urbanização, mesmo na
ausência de um município com mais de 100 mil habitantes. Parece mais razoável,
portanto, que a estratificação das microrregiões agrupe esses cinco tipos em
apenas três grandes categorias:
a)
microrregiões com
aglomeração (metropolitana ou não);
b) microrregiões significativamente urbanizadas (com
centro urbano ou com mais de 80 hab/km2); e
c)
microrregiões rurais
(sem aglomeração, sem centro urbano e com menos de 80
hab/km2).
O peso populacional relativo do Brasil rural estava,
em 2000, em torno de 30%, como também havia indicado a abordagem anterior de
caráter municipal. Enfim, o que parece poder variar é o peso das outras
categorias, a depender dos critérios que se utilize para hierarquizar o Brasil
urbano. Mas o lado rural do Brasil tende nos dois casos a se situar em 30% da
população.
É preciso enfatizar que o uso dessa tricotomia para
visualizar a configuração territorial do Brasil se baseia numa hierarquia que
combina vários critérios funcionais e estruturais. Começa pelo reconhecimento de
que as aglomerações são fatores marcantes - seja em termos funcionais como
estruturais - e que este é um critério suficiente para definir o topo da
hierarquia. O extremo oposto é definido pela menor pressão antrópica,
razoavelmente detectada pelo critério da densidade populacional e, de certa
forma, também pelo menor crescimento populacional. Finalmente, na categoria
intermediária estão as microrregiões que atingiram um grau ainda ambivalente de
urbanização ou, o que dá no mesmo, mantêm-se relativamente rurais.
Ao insistir na oposição entre os pontos de maior
artificialização ecossistêmica e as áreas de menor pressão antrópica, esta
abordagem tricotômica evita uma ingenuidade tão comum quanto traiçoeira: a de se
basear exclusivamente no critério do tamanho municipal. No México, por exemplo,
o Indesol (Instituto Nacional de Desarrollo Social) diferencia os municípios em
quatro categorias definidas exclusivamente pelo tamanho populacional. Considera
urbanos todos os municípios com mais de 50 mil habitantes; como “semi-urbanos”
os que ficam na faixa entre 10 mil e 49.999; como “semi-rurais” os que ficam na
faixa entre 2.500 e 9.999; e como rurais os que têm menos de 2.500 habitantes.
No entanto, um pequeno município de poucos milhares habitantes, mas que seja
adjacente a uma aglomeração, pode ser muito mais urbano que um município com
população bem maior, mas que tenha baixíssima densidade populacional e que
esteja distante das aglomerações e dos centros urbanos. Mesmo assim, não deixa
de ser surpreendente que 61% dos municípios mexicanos fiquem na categoria rural
e 19% na categoria “semi-rural”.
Enfim, esse critério de tamanho
populacional nem de longe reflete o que mais interessa: as alterações dos
ecossistemas provocadas pela espécie humana. E já estão disponíveis estimativas
que permitem que se agregue mais uma dimensão – a espacial - a esta estimativa
da importância relativa do Brasil rural.
A primeira observação a ser feita é sobre o
contraste entre o grau de artificialização dos ecossistemas da Europa e do resto
do mundo. Estão intensamente alterados uns 65% do território europeu (tanto por
assentamentos humanos quanto por agropecuária intensiva). Nos demais continentes
essa fração não chega a um terço, e atinge mínimos 12% na América do Sul e na
Australásia. Em seguida, é importante notar que mais da metade dos territórios
das Américas e da Australásia foram considerados praticamente inalterados, pois
mantêm a vegetação primária, com baixíssimas densidades demográficas.
Finalmente, pode-se dizer que metade da área planetária permanece praticamente
inalterada, e mais uma quarta parte parcialmente alterada com formas extensivas
de exploração primária. Ou seja, apenas uma quarta parte da área global está
mais artificializada pela urbanização e pelas formas mais intensivas de
agropecuária.
Informações recentemente disponibilizadas pela
Embrapa Monitoramento por Satélite mostram que a repartição do território
brasileiro segundo essas três intensidades de alteração humana está a meio
caminho, entre as situações da América do Sul e da América do Norte. A parte das
áreas inequivocamente artificializadas (urbanas e agropecuárias) não chega a
20%. Outros 18% ficam na categoria intermediária, constituída essencialmente por
mosaicos de vegetação alterada, outras formas ultra-extensivas de lavouras e
pastoreios (mas também por rochas e solos nus, ou com vegetação dispersa, e
corpos d’água). E nos demais 63% estão as florestas úmidas (43,2%), florestas
secas (6,4%), florestas inundáveis (1,7%), florestas de transição (2,9%), e
campos ou savanas (8,6%).
4. A
atualidade da contradição urbano-rural
O debate sobre a superação da chamada “dicotomia
urbano-rural” continua a opor, em seus extremos, a hipótese de completa
urbanização, lançada pelo filósofo e sociólogo Henri Lefebvre, à hipótese de um
renascimento rural, contraposta pelo geógrafo e sociólogo Bernard Kayser.
Passados mais de trinta anos, será possível saber qual dessas duas hipóteses
extremas está sendo confirmada? Ou será necessário constatar que ambas são
precárias e precisam fazer emergir outra, que se fundamente em evidências mais
recentes, tanto sobre novas formas de urbanização, quanto sobre novas formas de
valorização dos ecossistemas menos artificializados? Neste caso, quais seriam,
então, as evidências disponíveis sobre as tendências atuais de distribuição
espacial das pressões antrópicas? O que elas sugerem sobre o(s) futuro(s) do
chamado “mundo rural”? Quais serão seus destinos no processo de
globalização?
A hipótese lançada em 1970 pelo filósofo e sociólogo
marxista francês Henri Lefebvre se baseia numa definição: ele denomina sociedade
urbana aquela que resulta da urbanização completa, “hoje virtual, amanhã real”.
A expressão é reservada à sociedade que nasce da industrialização. “Essas
palavras designam, portanto, a sociedade constituída por esse processo que
domina e absorve a produção agrícola”. O conceito de sociedade urbana é proposto
para denominar “a sociedade pós-industrial, ou seja, aquela que nasce da
industrialização e a sucede”. E por “revolução urbana”, o autor designa o
conjunto de transformações que a sociedade contemporânea atravessa para passar
do período em que predominam as questões de crescimento e industrialização ao
período no qual a problemática urbana prevalecerá decisivamente, “em que a busca
das soluções e das modalidades próprias à sociedade urbana passará ao
primeiro plano”.
No final do livro A revolução urbana o autor
avisa que o desenvolvimento do conceito de sociedade urbana, antecipado desde a
primeira página a título de hipótese, não poderia ser entendido como acabado.
“Pretendê-lo seria dogmatismo. Seria inserir o conceito de ‘sociedade urbana’
numa epistemologia da qual convém desconfiar: porque prematura, porque põe o
categórico acima do problemático e porque detém e talvez desvie o movimento que
eleva o fenômeno urbano ao horizonte do conhecimento”. Quatro anos depois, nas
423 páginas do livro The production of space, que culminou intensa fase
de investimento intelectual em sociologia urbana (1968-1974), não surge qualquer
referência ao livro de 1970, e são raríssimas, e das mais indiretas, as alusões
à hipótese de urbanização completa. Em vez dela, menciona uma ‘revolução do
espaço’ que - entre parênteses - subsumiria a ‘revolução urbana’, análoga às
grandes revoluções camponesa (agrária) e industrial. Não seria despropositado,
portanto, especular que a hipótese de “completa urbanização” já não mais estaria
seduzindo, em 1973, seu próprio formulador. Todavia, não é essa a opinião de
muitos de seus admiradores, como demonstra a recente tradução e reimpressão do
livro A revolução urbana, com prefácio e “orelhas” cobertos de rasgados
elogios, além da anterior adesão de Otávio Ianni.
A hipótese inversa surgiu dois anos depois (1972),
segundo o geógrafo e sociólogo Bernard Kayser, que fez parte do grupo fundador
da revista Espace et Societé (1970-1980), junto com Henri Lefebvre. Na
conclusão de seu livro La renaissance rurale, Kayser relata as
circunstâncias em que usou pela primeira vez a expressão “renascimento rural”,
muito antes de sua emergência na literatura científica americana, no contexto do
debate sobre o significado de tendência demográfica oposta ao chamado “êxodo
rural”, que se manifestara desde os anos 1970 na maioria dos países
desenvolvidos. Debate que passou a ser mais polarizado pela expressão
“counterurbanization”, a partir de 1976.
Na verdade, em seu livro de 1990 Kayser já não
considerava que o “renascimento rural” fosse apenas uma hipótese. Ao contrário,
dizia que se tratava de uma “situação”. Não era a situação de todo o espaço
rural, mas recorrente o bastante para mostrar as potencialidades até ali
escondidas pela predominância de visões pessimistas e “catastrofistas” nas
esferas mediáticas e tecnocráticas. Sinais que só podiam condenar os profetas
da
“desertificação”.
Apesar desse tom conclusivo, quase de “favas
contadas”, há no início um “avant-propos” bem mais prudente, no qual o autor
declara que seu objetivo seria atingido se o conteúdo do livro fosse tomado como
um conjunto de hipóteses (“corps d’hypothèses”). Um reconhecimento que é
imediatamente seguido por uma confissão de duas sérias lacunas: a economia e a
ecologia. O autor reconhece que uma análise dessa amplitude deveria estar
apoiada em conhecimentos produzidos por essas duas disciplinas, mas que isso
teria tornado muito penosos, tanto o preparo quanto sua
leitura.
O argumento central de Kayser é que a alteração da
tendência demográfica não deveria ser vista como um fenômeno superficial ou
passageiro. Para ele, algo que até poderia parecer acidental, ou localizado, se
revelava um verdadeiro fenômeno “societal”. O repovoamento, os modos de vida, a
recomposição da sociedade em vilarejo (“villageoise”), as atividades
não-agrícolas, as políticas de ordenamento, a políticas de desenvolvimento
local, e as práticas culturais estariam mostrando que a dimensão demográfica
seria apenas um indicador do que já estava ocorrendo nos países desenvolvidos:
um renascimento rural.
As hipóteses lançadas por Lefebvre e Kayser parecem
ser refutadas pelas evidências dos últimos trinta anos, mas por razões bem
diferentes. A mais equivocada é a primeira, sobre a completa urbanização. E a
única maneira de entender que um pensador tão brilhante quanto Lefebvre tenha
sido levado e incorrer em tamanho engano, certamente está ligada ao vício de se
resumir o rural ao agrário. Havia muitas razões no início dos anos 1970 para se
prever o inexorável desaparecimento do tipo de sociedade agrária que ele tão bem
conheceu e analisou em sua fase de sociólogo rural. Mas a ruralidade nunca se
resumiu às relações sociais ligadas às atividades agropecuárias, mesmo na curta
fase histórica em que esse setor econômico foi dominante nos territórios
extra-urbanos. A segunda hipótese poderia parecer mais correta, já que todas as
evidências parecem vão no sentido de confirmar aqueles indícios que levaram
Kayser a vislumbrar um renascimento rural. Todavia, o termo renascimento não
parece ser apropriado para caracterizar um fenômeno que é inteiramente
novo.
5. Implicações
Apesar da separação urbano-rural ter começado a se
dissolver na Europa a partir do ano 1180, essa dicotomia não perdeu seu poder
cognitivo até finais do século XX, quando começaram a desaparecer contrastes
básicos (sanitários) entre populações residentes no interior e no exterior das
cidades (pelo menos no que se refere ao punhado de países nos quais o
capitalismo realmente se desenvolveu). Hoje, tais diferenças até podem
permanecer idênticas em países do mundo periférico, mas já não são tão marcantes
nos países ditos “emergentes”. Isto é, que não conseguiram se tornar
desenvolvidos, mas que já não podem ser confundidos com a maioria dos países do
chamado “Sul”.
As alternativas à dicotomia são classificações que
não eliminam os pólos que a constituem. Podem ser até mais dicotômicas, ao
subdividirem as classes originais em outras duas, ou podem ser ímpares, como são
os casos dos exercícios aqui apresentados sobre o Brasil, que utilizam três ou
cinco estratos hierárquicos. No entanto, em nenhuma dessas várias formas
empíricas de abordar a configuração territorial foi possível prescindir do
contraste urbano/rural. Nenhuma das opções apresentadas conseguiu “se libertar”
do jugo dessa oposição. Tudo se passa como se a dicotomia resistisse a todas a
tentativas de superá-la, permanecendo onipresente, mesmo que criticada e
rejeitada.
É que há aqui uma questão básica de lógica.
Dicotomia é uma divisão em dois ramos, ou a divisão de um gênero em duas
espécies que absorvem o total. É uma classificação em que se divide cada coisa
ou cada proposição em duas, subdividindo-se cada uma destas em outras duas, e
assim sucessivamente. Contradição não é subdivisão, e sim oposição entre duas
idéias, ou duas proposições. Para o senso comum, em qualquer oposição entre duas
proposições contraditórias, uma delas exclui necessariamente a outra. E, neste
sentido, de fato, contradição e dicotomia seriam expressões sinônimas. Se a
dicotomia é uma divisão em dois ramos, cada um exclui o outro, sendo, pois,
também uma contradição.
Todavia, a noção de contradição sempre foi algo bem
diferente na filosofia ocidental. Pelo menos desde que Heráclito - há cerca de
2,5 mil anos - transformou em solução o que até ali parecia um grande mistério.
Para ele, o mundo deveria ser entendido justamente pela unidade dos contrários,
tese que só foi ganhar mais consistência com Kant e Hegel, há menos de duzentos
anos. E no século XX ela gerou um imenso e confuso debate – que está longe de se
encerrar - sobre a chamada relação Marx/Hegel e seus eventuais desdobramentos
sobre os marxismos e seu declínio.
Desde logo é preciso lembrar que muitos conceitos
podem ser diferenciados de forma discreta, no sentido matemático dessa palavra.
Entre os conceitos de círculo e de quadrado não há qualquer “zona cinzenta”. São
conceitos que simplesmente não se sobrepõem. Todavia, não é desse tipo a relação
entre o quadrado e o retângulo. É quase impossível ter certeza de que um
retângulo concreto seja de fato um quadrado concreto. Além disso, o quadrado é
“Um” no âmbito das idéias, mas “Muitos” no âmbito dos sentidos. Até os conceitos
de “vida” e de “morte” já escaparam da relação binária desde que os biólogos
afirmaram que certos vírus/cristais estão na penumbra entre os reinos animado e
inanimado. Praticamente todos os grandes conceitos que envolvem julgamento, ou
que são valores (como justiça, ou democracia), pertencem à segunda categoria.
Não há entre eles fronteiras “arithmomórficas”, pois são cercados por uma
penumbra na qual estão sobrepostos aos seus contrários. E não há necessidade
alguma de esticar este raciocínio para afirmar que as noções de urbano e rural
são desse tipo, mesmo que possam ter sido realmente “arithmomórficas” na Europa
dos séculos X a XII.
Como movimento dos contrários, a relação
urbano-rural evoluiu tanto nos países mais avançados, que alguns são tentados a
imaginar que a sociedade pós-industrial será completamente urbana. Ou seja, que
o pólo rural da contradição desaparecerá.
No entanto, encantos como paisagens silvestres ou
cultivadas, ar puro, água limpa, silêncio, tranqüilidade, etc., muito
valorizados por aposentados, turistas, esportistas, congressistas e alguns tipos
de empresários, já constituem a principal fonte de vantagens comparativas da
economia rural. Além disso, o crescimento econômico não poderá se basear por
muito mais tempo na extração da baixa entropia contida no carvão, gás e
petróleo. Logo deverá se basear em formas mais diretas de exploração da energia
solar, com destaque para a biomassa. Quando se evoca a necessidade de
conservação da biodiversidade, o mais comum é que se pense em espécies que estão
mais ameaçadas de extinção e nas conseqüentes perdas de informação genética.
Contudo, além de não serem estes os únicos prejuízos impostos pela redução da
biodiversidade, talvez nem sejam os principais. Bem pior é o enfraquecimento dos
ecossistemas que os torna vulneráveis aos choques. Isto é, uma diminuição da
capacidade de enfrentar calamidades ou destruições provocadas pelas sociedades
humanas sem que desapareça seu potencial de auto-organização.
Em resumo, há muitas
razões para se afirmar que está em curso uma forte revalorização da ruralidade,
em vez de sua supressão por uma suposta completa urbanização. São rurais as
amenidades que já sustentam o novo dinamismo interiorano dos países mais
avançados. E também são rurais, tanto as fontes de baixa entropia, quanto a
biodiversidade, das quais dependerão as futuras gerações. O valor do espaço
rural está cada vez mais ligado a tudo o que o distingue do espaço
urbano.
REFERÊNCIAS
BANCO MUNDIAL. Globalização, crescimento e pobreza. S.Paulo: Futura, 2002.
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1999.
HELD,
David & Anthony McGrew. Prós e contras da
globalização. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar editor, 2001.
HELD,
David, Anthony McGrew, David Goldblatt & Jonathan Perraton. Global
transformations; politics, economics and culture. Stanford University
Press, 1999.
VEIGA, José Eli. “Nem tudo é urbano”, Ciência e Cultura, ano 56, n.2, abr.-jun. 2004, pp. 26-29.
______________ “A dimensão rural do Brasil”, Estudos Sociedade e Agricultura, n. 22, Abril 2004, (no prelo)
______________
“Destinos da ruralidade no processo de globalização”, Estudos
Avançados, vol. 18, n.51, maio-agosto 2004, (no
prelo).
______________ “A atualidade da contradição
urbano-rural”, Análise Territorial da Bahia Rural, (Série Estudos e Pesquisas n. 71, Setembro),
Salvador: SEI (no prelo).
[1] Ver Castells (1999:404).
[2] Tanto faz aqui a idéia de “nova onda” (a partir de 1980) ou de “globalização contemporânea” (desde 1945). A primeira é do Banco Mundial (2002), que considera três ondas: ‘1870-1914’, ‘1945-1980’ e a “nova onda” (desde 1980). A segunda é a de Held et al. (1999), que separam o processo em quatro fases, das quais três “modernas”: ‘1500-1850’, ‘1850-1945’ e a contemporânea (desde 1945).
[3] Ver Veiga (2004), para tabelas e referências bibliográficas não reproduzidas aqui. Os quatro textos estão disponíveis na página http://www.econ.fea.usp.br
[4] No caso da União Européia, de longe o mais significativo, a consciência coletiva desse fenômeno manifestou-se bem cedo, desde seu “alargamento para o sul”, em 1981 e 1986. A superação do foco exclusivamente setorial (agrícola) de suas políticas rurais, e a conseqüente transição para uma abordagem territorial, começaram a surgir em meados dos anos 1980, e se materializaram pela primeira vez na reformas dos “fundos estruturais” de 1987. O aprofundamento dessa tendência pode ser avaliado a partir de dois documentos que se tornaram emblemáticos: a) o comunicado da Comissão Européia ao Conselho e ao Parlamento intitulado “O futuro do mundo rural”, de 1988; e b) e a famosa “Declaração de Cork”, que saiu da conferência “A Europa Rural – Perspectivas de Futuro”, realizada em Novembro de 1996.