CINE NOMADS

I EXIBIÇÃO - ÁGUA PRATEADA, UM AUTORRETRATO DA SÍRIA

     O primeiro filme apresentado pelo programa do Cine Nomads de 2019 foi Água prateada, um autorretrato da Síria ou Eau argentée, syrie autoportrait, do diretor Ossama Mohammed produzido em colaboração com Wiam Simav Bedirxan. O filme retrata o regime autoritário de Bashar Al Assad na Síria, sobre a perspectiva dos habitantes do cerco de Homs, uma das cidades assoladas pelo conflito armado e vítima da progressiva perda dos direitos civis. Em Paris, o diretor Ossama Mohammed reúne em seu trabalho um conjunto de vídeos e filmagens que retratam o cerco, contando também com os registros da jovem Simav, professora de origem curda, que desempenha na Síria o papel dos olhos e ouvidos do diretor, refugiado. Exibido no Festival de Cannes 2014, Eau argentée mostra consequências de um governo totalitário, apoiado por forças externas e que através de ações militares transforma radicalmente a realidade da população, dado o horror  do conflito armada ou a dor do exílio.  

     O filme, já exibido em outra iniciativa do Cine Nomads, foi retomado devido a relevância do debate frente ao contexto político atual. Também porque esse  documentário retrata o vínculo, possibilitado pelas atuais redes de tecnologia, entre realidades distintas, como a do diretor exilado e a da professora, que vive em território bélico. O filme conta ainda com a tradução das legendas em português realizadas por membros do Nomads.Usp sobre a autorização especial do diretor. A exibição realizada no dia 30 de abril contou com público de cerca de 10 pessoas, reunindo pesquisadores do grupo, assim como alunos do Instituto e outros membros da comunidade acadêmica de São Carlos. 

     A discussão sobre o filme começou pelas fortes cenas de violência, crua e explícita, que geram impacto na audiência assim como um crescente desconforto, por se tratar de imagens reais descoladas da ficção, diferenciando-se das imagens de mesma natureza que estamos habituados porém com consciência de que foram encenadas. Seguindo o debate, foi citado o modo como a mensagem final, apesar da aspereza das cenas, carrega um olhar otimista para o futuro, que acredita na mudança de realidade para a Síria. 

     Outro aspecto abordado foi a relação desenvolvida entre Ossama e Simav, que nos conta muito do processo de desenvolvimento do filme. De um lado, a realidade do diretor exilado na França, que olha com melancolia para os acontecimentos no país de origem; de outro, a jovem professora que vive o conflito, registra-o e o transmite como material de trabalho para o diretor. Dentro desse relacionamento, a ligação entre os refugiados e o país de origem fica muito evidente quando Simav deixa a Síria para se encontrar com o diretor na França, mas opta por retornar ao país destruído por acreditar na possibilidade de mudança. Também foi destacada a sensibilidade do diretor, respeitando os relatos e as narrativas das pessoas, retratados pela câmera, mas ao mesmo tempo inserindo seu discurso e a sua narrativa na construção do filme. Nesse jogo de sensibilidade, também há Simav, que se propõe a ser os olhos e ouvidos do diretor na Síria, desenvolvendo um gosto e um olhar sensível para registrar sua dura realidade.  

     Debateu-se ainda como essa sensibilidade ou poética ameniza a crueldade das imagens, chamando a atenção para uma dimensão estética, em que há um cuidado nas composições, mesmo se tratando de registros de baixa qualidade gráfica, captados em contexto de guerra. Entende-se que a experiência produzida pelo filme não busca enxergar beleza na realidade retratada, mas transmitir dor, sofrimento e esperança, entre outros sentimentos enfrentados pelo povo sírio, de forma empática e verdadeira.

     Por fim, refletiu-se sobre a dimensão política do filme, uma vez que  uma crise pôde favorecer a ascensão de um regime autoritário, que se apoia na militarização da polícia e das forças armadas e na supressão de direitos civis e da liberdade de expressão, eliminando assim qualquer forma de oposição. A reflexão não deixa de lado as forças externas que apoiam estas ditaduras em função do capital internacional. Ainda se debateu a importância das redes de comunicação, uma vez que mesmo em contexto de conflito armado, a rede de comunicações continua em funcionamento. Esse funcionamento, planejado para o favorecimento das atividades militares, entretanto, acaba por possibilitar a expressão da população oprimida por esta realidade.

II EXIBIÇÃO - CURTA NOMADS

     A segunda exibição de 2019 reuniu um conjunto de produções realizadas por membros do Nomads.Usp procurando explorar as possibilidades do audiovisual para leitura e a representação de dinâmicas urbanas. Essas, como já foi apontado, constituem um dos campos de interesse do grupo, trazendo produtos de iniciativas como Frontier Zones, Filma Nomads, Territórios Híbridos e o DocCidades, ou ainda produtos de outros contextos, como o Projeto Instantâneo, do grupo algo+ritmo da UFMS. Assim, foram exibidos no dia 14 de maio de 2019 oito curtas com duração variada,  representado ao total 1 hora e 20 minutos de exibição, com os títulos: An[danças], Arrhythmia, Re:cordis, Espécies de espaços, Backstage, Do skyscrapers have eyes?, Framed Freedom e Nossa Morada. 

     Esta exibição constituiu um momento de avaliação da produção audiovisual do grupo, contando com a presença dos pesquisadores do Nomads.Usp e de alunos do Instituto. O debate comentou sobre as experiências dentro dos diferentes momentos da produção audiovisual, como a captura de imagem e som, armazenamento do material, elaboração do roteiro, o processo de edição e a própria exibição. Porém, destacou-se a constante mudança na percepção dos envolvidos ao longo desses diferentes processos. O debate trouxe ainda o olhar dos elaboradores dos trabalhos citados, que revisitando estas obras revelam um olhar mais crítico sobre as intenções e os resultados obtidos, enxergando outras possibilidades de abordagem ou execução. 

     Por outro lado os membros do grupo e alunos que tinham seu primeiro contato com as obras ressaltam as qualidades e méritos dos resultados obtidos, apontando para detalhes de sucesso. Dentre esses, a música de Iannis Xenakis no curta Espécies de espaços, que foi apontada como elemento de incômodo, mas que também prende a atenção às imagens. Também há o curta Re:cordis, trabalho destacado como singular entre os demais, por não tratar diretamente do espaço urbano, mas sim do ambiente híbrido de comunicação possibilitado pelas redes atuais. Esse fato culmina em iniciativas de edição que procuram retratar o ambiente virtual dessas novas maneiras de comunicar.

     Outro assunto abordado: diferenças entre a experiência de um espaço através do audiovisual e a da percepção física, ao avaliar as possibilidades e limitações daquela forma de representação em relação a outra. Nesse contexto, destaca-se a capacidade do curta Framed Freedom de sugerir a atmosfera de usos e vivências do espaço através da representação. Esses debates destacaram ainda as camadas de leitura das diferentes formas de experimentar o espaço, através do audiovisual, de representações tradicionais da arquitetura como plantas, cortes e elevações ou mesmo da visita ao espaço, evidenciando como essas experiências podem se complementar para um maior entendimento da realidade urbana. 

     Por fim, foi ressaltado como o caráter amador e experimental das produções permitiu uma liberdade muito grande de abordagens, uma vez que o compromisso destes experimentos não era produzir grandes obras do audiovisual. Então, testaram-se diferentes ferramentas para construção de leituras urbanas que pudessem auxiliar nas prática dos profissionais da arquitetura e do urbanismo. Desse modo, produziram-se obras que poderiam conter falhas, sob a perspectiva cinematográfica,  mas que ressaltam importantes aspectos das dinâmicas urbanas retratadas, suas informações sonoras e visuais. Entende-se que com isso, pode-se superar alguns métodos de representação tradicionais da Arquitetura e do Urbanismo, os quais não são capazes de absorver esses aspectos da realidade. Assim, ficou evidente o potencial de diálogo entre a Arquitetura e o Audiovisual e as infinidades de trocas possíveis entre esses distintos campos do conhecimento.

III EXIBIÇÃO - HUMAN VOL.1

     A terceira exibição foi o primeiro volume da série de documentários Human, de Yann Arthus-Bertrand. Este filme busca entender a complexidade do ser humano e nossas dinâmicas sociais, a partir de entrevistas realizadas com mais de 2.000 homens e mulheres, de mais de 60 países diferentes. Esse primeiro volume debate questões comuns ao ser humano, como o amor, gênero, as relações de trabalho e a desigualdade social sobre o ponto de vista das diferentes sociedades e culturas. 

     Human Vol. 1 foi escolhido não só pela profundidade de suas reflexões, mas também devido ao tratamento que dá aos relatos que estruturam a narrativa do documentário. O documentário traz todas as entrevistas com um fundo neutro, com plano fechado, focando o rosto dos indivíduos, incluindo as legendas como parte da composição do quadro. Assim, estabelece um padrão de representação seguido ao longo de todo o filme, sendo um exemplo referencial de como articular as diferentes vozes de quem está diante da câmera. A exibição do filme foi realizada no dia 28 de maio de 2019 e contou com a presença dos membros do grupo de pesquisa. 

     A primeira questão levantada pelo documentário foi a profundidade e a diversidade dos relatos, que permitem a identificação com os entrevistados mesmo que estes sejam de culturas e países diferentes, gerando uma forte reação empática. Outro aspecto que impressionou o público foram as imagens aéreas que registram paisagens naturais, povos nômades, mercados populares e grandes centros metropolitanos, retratando diferentes formas e dinâmicas da ocupação do espaço. Estas imagens intercaladas com as entrevistas impressionam pela qualidade da fotografia e da composição gráfica e nos aproximam de realidades pouco testemunhadas. Mas, essas fazem parte do imaginário de um mundo globalizado, gerando especulações sobre as condições da captura da imagem e sobre a experiência de estar nesses espaços. O filme despertou também um desconforto com a realidade existente, instigando, segundo o público, um desejo de mudança e de transformação.

     Abordando questões mais técnicas, foi apontada a simplicidade da edição, que não se destaca no filme, passando muitas vezes despercebida, mas contribuindo de uma maneira geral para o impacto das imagens. Algumas estratégias de edição apontadas no debate foram os efeitos de Slow Motion usados para destacar expressões ou gestos faciais e também momentos de descolamento da fala com a figura do indivíduo, apresentando uma série de pessoas antes de quem efetivamente fala, Isso, sugerindo a interpretação de que o discurso em questão representa todo o conjunto das pessoas representadas. 

     A relação entre os planos aéreos e os debates das entrevistas também foram levantados, sendo apontadas claras relações entre estes dois grupos. Exemplos disso: uma garota que cavalga após debates de gênero ou as imagens da exploração do trabalho em um aterro sanitário próximas ao debate sobre desigualdades sociais e condições de trabalho. Por fim, a última especulação à qual o debate se ateve foi o processo de captura das entrevistas – se havia alguém presente na figura do entrevistador? que estratégias foram usadas para se construir a confiança entre quem fala e quem escuta? quanto tempo de análise e estudo do material foi preciso para sua seleção? Assim se encerraram as discussões, com algumas suspeitas, mas com a maior parte das questões em aberto.

IV EXIBIÇÃO - KOYAANISQATSI - UMA VIDA FORA DE EQUILÍBRIO

     A última exibição do semestre foi o documentário Koyaanisqatsi – Uma Vida Fora de Equilíbrio de Godfrey Reggio, que conta com fotografia de Ron Fricke e música de Philip Glass. Esta obra marcou a trajetória do gênero documentário por se propor a trabalhar apenas com imagem e trilha sonora, sem recorrer a diálogos ou narrações. Este filme, reuniu imagens capturadas ao longo de 7 anos junto a uma trilha sonora composta para o filme, possibilitando uma série de explorações técnicas. Koyaanisqatsi debate o futuro de nossa civilização, reunindo registros de nossa realidade urbana, nossos meios de produção e das novas tecnologias para refletir sobre o destino da caótica modernidade. 

     Sendo a última exibição do semestre, este espaço reuniu público menor em relação às demais exibições, devido às outras atividades do final do semestre que inviabilizaram a participação de muitos interessados. Assim, essa seção, feita no dia 18 de junho de 2019, contou com a participação apenas de membros do grupo de pesquisa envolvidos na produção audiovisual e na organização do espaço. A primeira questão levantada foi a expectativa de que o filme seria cansativo por se tratar apenas de imagem e som. Isso não correspondeu à experiência de assistir ao filme, uma vez que a dinâmica, resultante das imagens conectadas à trilha sonora, mantém a atenção do telespectador.

     Então, essa improvável dinamicidade que configuram estrutura básica do filme se definiu como um dos principais destaques. Além disso, foi apontado que apesar da relação dialética entre imagem e som na obra, ambos elementos possuem uma relativa autonomia, podendo ser encarados individualmente como uma obra musical ou visual. Outro ponto de vista apontava a trilha sonora como uma âncora, servindo de base para estruturação das imagens, uma vez que as sequências do filme estão relacionadas à duração das partes que constituem a trilha sonora. A diversidade de imagens com planos, movimentos e velocidades diferentes, levantaram especulações sobre a sua forma de captura, considerado o contexto de produção da obra, em que muitas das tecnologias modernas ainda não estavam disponíveis. Assim, é notória  a qualidade das experimentações técnicas que marcam a obra. 

     Outro aspecto analisado foi a liberdade de interpretações que o filme permite, uma vez que que os recursos de imagem e som possibilitam uma apreensão subjetiva da obra, podendo despertar diferentes associações em função das experiências e do imaginário de cada indivíduo. Mesmo assim a obra carrega em sua montagem um discurso, mais evidente ao fim do filme, quando são apresentadas as traduções das profecias hopi, entoadas na primeira parte da trilha sonora. Esse recurso influencia as leituras individuais de cada telespectador e evidencia o discurso da obra, sem contudo definir seu significado. Por fim o debate termina com um elogio à obra, que resgata a simplicidade dos elementos mais puros do cinema, a imagem e o som, para construção de uma obra complexa e rica em significados. 

FUTURAS EXIBIÇÕES

     O Cine Nomads é uma iniciativa itinerante do Nomads.Usp, vinculado à extensão universitária, que procura construir um espaço de reunião de pesquisadores, alunos, especialistas ou convidados e o público em geral para exibição de filmes e debate sobre suas temáticas. Essas, pertinentes às pesquisas em desenvolvimento no Grupo ou ao contexto sociopolítico. Tal iniciativa foi retomada no primeiro semestre de 2019, interrompida desde de 2016, esse ciclo de exibições abrangeu alguns dos temas de interesse deste projeto, sendo que as quatro exibições já foram comentadas acima. 

     Após esse primeiro ciclo de exibições, houve um intervalo pelo segundo semestre de 2019, sendo retomadas as discussões no primeiro semestre de 2020. Nesse momento, em conjunto com os pesquisadores do grupo engajados na organização desse espaço, foi realizado uma avaliação das experiências obtidas no ciclo anterior bem como possíveis alterações a serem aplicadas no novo ciclo. 

     Assim começou a se desenhar um outro formato de exibição que se deslocava do auditório para o espaço aberto, como já havia sido feito pelo nomads em outros momentos. Esse deslocamento esperava ativar o espaço da exibição como parte da leitura do filme e incorporando junto aos espectadores atraídos, uma audiência inesperada de passantes ou usuários diversos do espaço que poderiam se engajar na exibição pelo acaso. Nesse sentido, foi idealizada a utilização de espaços da universidade, como espaços do Instituto de Arquitetura e Urbanismo ou mesmo a área externa do espaço Cultural da USP. 

     Outra das mudanças idealizadas foi o convite de docentes ou teóricos que pudessem contribuir de alguma forma com debate proposto em cada exibição, assim como a sugestão de referências bibliográficas que pudessem de alguma forma orientar o debate. Foi discutida também a construção de possíveis parcerias que poderiam colaborar no engajamento do público e na montagem do espaço, nesse sentido alguns dos possíveis diálogos cogitados foram o Centro Cultural da USP ou mesmo o curso de imagem e som da UFSCAR. 

     Entretanto nenhuma destas proposições teve espaço para ser colocada em prática, devido à pandemia do COVID19, que acabou por inviabilizar este tipo de atividade acadêmica. Contudo, se faz relevante o apontamento dessas proposições para futuras ações do Cine Nomads.