HABITAÇÃO, HÁBITOS E HABITANTES:
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS METROPOLITANAS [1]

Marcelo Tramontano

Como citar esse texto: Tramontano, M. Habitações, metrópolis e modos de vida: por uma reflexão sobre a habitação contemporânea. Texto premiado no 3º Prêmio Jovens Arquitetos: Primeiro Lugar na categoria Ensaio Crítico. São Paulo: Instituto dosArquitetos do Brasil - SP / Secretaria de Estado da Cultura, 1998.

Na história de diversos países do mundo, o processo de industrialização tem-se associado, com freqüência, à concentração de população em polos industriais, e a profundas mudanças na composição do grupo familiar e nas relações entre seus membros. Filhos legítimos destes acontecimentos, o nascimento de um modo de vida metropolitano, nos séculos XVIII e XIX, e a afirmação da família nuclear como modelo familiar Moderno vieram substituir um modo de produção anterior, inserido em um modelo econômico que se baseava, sobretudo, na mão-de-obra da família extensa.[2] Este grupo medieval compunha-se de familiares, empregados e aprendizes sob a tutela de um pai-patrão proprietário dos meios de produção, todos morando na casa onde se sobrepõem, em muitos casos, em um único grande cômodo, habitação, trabalho e espaço de uso público.[3] Contrariamente, a casa da sociedade industrial não mais abriga o espaço de trabalho, e é habitada por pessoas ligadas umas às outras por laços de consangüinidade muito estreitos. O espaço fabril, território por excelência masculino e aberto ao público, diferencia-se do espaço doméstico, feminino e privado por oposição, dividido em cômodos que se organizam em zonas, a exemplo da habitação burguesa parisiense da Segunda metade do século 19.

A partir de 1945, a vitória aliada na Segunda Guerra Mundial consagra a cultura norte-americana como referencial de costumes para toda sociedade mecanizada que se queira moderna, difundida, sobretudo, pelo mais poderoso e mais abrangente meio de comunicação de que se havia tido notícia até então: Hollywood, máquina perfeita na divulgação da maneira de morar americana, que incluía eletrodomésticos, automóvel, o marido no papel do forte, inteligente, lógico, consistente e bem-humorado provedor, e a esposa, no da intuitiva, dependente, sentimental, auto-sacrificada, mas sempre satisfeita gerenciadora de uma habitação impecavelmente limpa, agora elevada à categoria de bem de consumo.[4]

No entanto, à nuclearização da unidade familiar, cujo processo estende-se desde, pelo menos, o século XVI até os nossos dias,[5] seguiu-se seu estilhaçamento, potencializado, na segunda metade do século XX, quando surgem novos formatos de grupos domésticos: famílias monoparentais, casais DINKs - Double Income No Kids -, uniões livres - incluindo casais homossexuais -, grupos coabitando sem laços conjugais ou de parentesco entre seus membros, e uma família nuclear renovada, ainda dominante nas estatísticas, mas com um enfraquecimento da autoridade dos pais em benefício de uma maior autonomia de cada um de seus membros. Todos passos em direção a um - aparentemente - novo padrão social: pessoas vivendo sós. As causas desta evolução são inúmeras e, relativamente, recentes.

O ano de 1965, por exemplo, tem sido apontado, tanto pelos Censos e Pesquisas Nacionais por Amostras de Domicílios brasileiros, como por sociólogos e demógrafos europeus, como o turning point da taxa de fecundidade. Considerando dados para a França, a Inglaterra, a Suécia, a Itália, a Alemanha e a Holanda, a demógrafa brasileira Elza Berquó, por exemplo, constata que "por volta de 1965, a fecundidade destes seis países variava entre 3,2 e 2,5 filhos por mulher. Em 1970, esta variação cai para 2,5 a 2,0; em 1975, a grande maioria tem sua fecundidade entre 2,0 e 1,5. O ano de 1985 registra valores entre 1,8 e 1,3 filhos por mulher."[6] Por trás da queda da fecundidade, encontra-se uma mulher que reivindica, entre outras coisas, um lugar no mercado de trabalho, a liberdade de ter relações sexuais dissociadas da obrigatoriedade católica de procriação, o direito de escolher quando ter - ou não ter - filhos, o direito de separar-se do parceiro - ou parceira - sem ser, por isso, estigmatizada pela sociedade. Esta nova postura feminina, respaldada pela difusão de métodos contraceptivos mais acessíveis e mais eficazes, vai tornar-se passagem obrigatória de qualquer reflexão sobre as alterações nos padrões de comportamento que acabamos herdando dos anos 1960.

É também por volta das décadas de 1950 e 1960 que a informatização começa a dar sinais de um desenvolvimento capaz de permitir-lhe suceder à mecanização. Apenas trinta anos mais tarde, a comunicação à distância vê-se já completamente modificada, as noções de deslocamento postas em cheque, enriquecidas com a banalização do conceito de realidade virtual. Diferentemente da sociedade industrial, na qual a população agrupa-se em polos onde está a informação, na emergente sociedade pós-industrial, como tem sido chamada, a informação é que seria levada aos indivíduos, e o lugar onde eles concretamente se encontram importa pouco. O chamado modo de vida metropolitano propaga-se também através dos meios de telecomunicação, o que contribui, sem dúvida, para o movimento - em curso - de população a partir das grandes cidades do mundo em direção a comunidades menores. Por diversas razões, São Paulo, Paris e Tóquio têm experimentado o chamado efeito doughnut, que significa o decréscimo de densidade populacional nas áreas centrais e o aumento de população além de suas fronteiras administrativas. Além disso, em anos recentes, esta tendência vem sendo acompanhada por uma alteração no perfil dos habitantes das cidades: mais e mais pessoas solteiras, jovens profissionais, trabalhadores de escritório e estudantes preferem gastar maiores somas com o aluguel de um apartamento - cuja área é cada vez menor - situado nas áreas centrais das cidades, próximos da vida noturna e do lazer urbano, ao invés de submeterem-se a longos deslocamentos diários em transportes coletivos, vivendo em bairros e subúrbios distantes.

O habitante das grandes cidades do mundo parece assemelhar-se, cada vez mais, aos seus congêneres de outros países, agrupando-se em formatos familiares parecidos, vestindo roupas de desenho semelhante, divertindo-se das mesmas maneiras, degustando os mesmos pratos, equipando suas casas com os mesmos eletrodomésticos, trabalhando em computadores pessoais que se utilizam dos mesmos programas, capazes de ler, em todo o mundo, as informações contidas em um mesmo disquete. Isto significa que, aparentemente impulsionada pela potencialização dos meios de comunicação de massa, uma enorme transformação de hábitos está em curso, minimizando, inclusive, a influência de culturas locais. É sobretudo neste sentido que estas transformações são profundas: no ponto em que, equipado com meios mais performáticos de comunicação à distância, o local de trabalho tende a ocupar novamente o espaço da habitação, que deverá alojar um número mínimo de pessoas, talvez - e com, aparentemente, crescente probabilidade - uma única, criando o cenário que abrigará um novo tipo de força de trabalho, completamente fragmentada.

No que concerne o desenho do espaço doméstico para esta população em transformação, o ritmo das inovações tem sido bem mais lento. Paulistanos, parisienses e toquioítas habitam casas e apartamentos cujos espaços tendem a assemelhar-se a tipologias que vão do modelo da habitação burguesa européia do século XIX, caracterizado pela tripartição em áreas social, íntima e de serviços, ao arquétipo Moderno da habitação-para-todos, com sua uniformidade de soluções em nome de uma suposta democratização das características gerais dos espaços. Mesmo que agora tendam a habitá-la grupos domésticos cujo perfil difere cada vez mais da família nuclear convencional, e cujos modos de vida apresentam uma diversidade cada vez maior, o desenho dos espaços desta habitação permanece intocado, sob a alegação de que se chegou a resultados projetuais economicamente viáveis, que atendem às principais necessidades de seus moradores. Como se sabe, esses dois modelos foram originalmente concebidos para a família nuclear, em um momento em que esta tipologia familiar surgia como absolutamente dominante. No caso da habitação européia oitocentista burguesa, seu funcionamento vinculava-se à presença de pessoal doméstico, propositalmente separado dos patrões. Quartos de empregados, tanto quanto banheiro e cozinha, eram considerados espaços de rejeição e, portanto, relegados aos fundos da moradia. Salas e vestíbulos compunham os espaços de prestígio - a face pública da habitação - em oposição aos espaços de intimidade, os quartos de dormir do dono da casa e de sua família. Já nas propostas Modernas do primeiro pós-guerra europeu, materializadas exemplarmente nas siedlungen patrocinadas pela social-democracia alemã, a cozinha foi trazida dos fundos da casa para, fundida com a sala de estar, tornar-se o espaço privilegiado do convívio entre os membros de uma família nuclear cuja mãe era a principal encarregada das tarefas domésticas. Além disso, a pouca área útil de cada unidade foi tratada com elementos flexíveis - camas escamoteáveis, mesas dobráveis ou sobre rodízios, portas de correr - procurando viabilizar a meta de um cômodo por pessoa, fosse ele minúsculo.

É verdade que as principais tipologias habitacionais, encontráveis, por exemplo, nas periferias das grandes cidades do mundo inteiro, permanecem aproximadamente as mesmas há décadas. O Movimento Moderno europeu do entre-guerras constituiu o primeiro e único momento em toda a história da Arquitetura em que o desenho e a produção de espaços de morar foram integralmente revistos, analisados de acordo com critérios claramente formulados, cujos resultados nortearam - e ainda norteiam - boa parcela de projetos de habitação em todo o mundo ocidentalizado. Além disso, tais análises incluíram o projeto da habitação social entre as atribuições do arquiteto, o que, por si, já seria suficiente para assegurar-lhe importância. No entanto, os arquitetos Modernos previram uma habitação prototípica, que correspondia a um homem, a uma cidade, a uma paisagem igualmente prototípicos em sua formulação. Criaram um arquétipo, o da habitação-para-todos, baseado em uma concepção biológica do indivíduo, mas a abrangência das proposições que ele continha foi sendo gradativamente desconsiderada pela lógica técnico-financeira dos empresários da construção, que preferiram apropriar-se apenas de elementos e conceituações economicamente rentáveis. É este arquétipo Moderno da 'habitação-para-todos', mesclado aos princípios da repartição burguesa oitocentista parisiense, que veio sendo reproduzido ad infinitum, em todo o mundo de influência ocidental, durante todo o nosso século, com pequena variação local, destinado a abrigar, basicamente, a família nuclear. No entanto, estudiosos de diferentes horizontes têm apontado na mesma direção quando o assunto é a metrópole do século XXI: seu habitante parece ser um indivíduo que vive, principalmente, sozinho, que se agrupa eventualmente em formatos familiares diversos, que se comunica à distância com as redes às quais pertence, que trabalha em casa mas exige equipamentos públicos para o encontro com o outro, que busca sua identidade através do contacto com a informação.

O que tem a dizer a Arquitetura diante deste quadro, se é que o tema Habitação já não lhe escapou de vez por entre os dedos para tornar-se atribuição de investidores e usuários que não possuem outra referência senão os modelos citados? Segundo quais critérios serão formuladas novas propostas para o desenho deste espaço? Os estudos e pesquisas relativos ao assunto costumam limitar-se a questões de natureza tecnológica, à discussão de políticas habitacionais governamentais visando a população de baixa renda, ou, no máximo, a aspectos da história da Habitação. O próprio ensino de Projeto da Habitação, nos cursos de Arquitetura brasileiros, costuma exigir dos alunos competência para reproduzir os modelos existentes, e, apenas muito raramente, procura despertar-lhes uma reflexão mais profunda sobre novos desenhos possíveis para estes espaços, em função de comportamentos emergentes. Ainda que de forma muito preliminar, algumas questões podem ser rapidamente esboçadas. Exemplos:

1. Quais seriam os limites desejáveis do espaço privado da habitação? Que tipo de espaços coletivos e públicos assegurariam condições para o desenvolvimento de novas relações sociais e, ao mesmo tempo, de relações já existentes? Quais atividades tradicionalmente realizadas em uma destas esferas tenderiam a deslocar-se para alguma outra?

2. Quais novas estruturas espaciais corresponderiam ao abrigo de coabitantes com crescente necessidade de privacidade, já que esta parece ser uma reivindicação de membros de todos os grupos domésticos?

3. Em que medida seria razoável supor que à alternância de comportamentos de um mesmo grupo poderia corresponder uma flexibilidade contínua do espaço da habitação?

4. De que maneira a porção do espaço doméstico reservada temporária ou exclusivamente ao trabalho remunerado - o trabalho-em-casa - integra-se ao restante da habitação? Deveria situar-se na esfera privada da moradia, ou nas instâncias coletiva ou pública ?

5. Quais novos desenhos poderiam corresponder a cada espaço da casa, se o banho passa a constituir um momento de relaxamento, cozinhar torna-se uma atividade convivial, e a habitação se superequipa?

6. Que relações existiriam de fato entre carro e moradia? Quais qualidades devem ser atribuídas aos lugares reservados aos carros? Seriam estas máquinas extensões do espaço privado circulando no território público, ou, inversamente, porções impregnadas da instância pública toleradas na esfera privada?

Sabemos que, no que concerne o desenho da habitação metropolitana, o processo de tomada de decisões envolve uma infinidade de parâmetros de natureza política e econômica - e não apenas reflexões específicas de projeto - assim como um grande grupo de profissionais, entre os quais o arquiteto. No entanto, acreditamos que a este profissional cabe estar atento às transformações cada vez mais intensas e profundas da sociedade cuja moradia ele é chamado a projetar. Utilizar-se dos novos comportamentos como critério de projeto certamente contribuirá para que seus desenhos de novos espaços de morar influenciem aqueles que detêm o poder de efetivar mudanças.

NOTAS


[1]O conteúdo deste artigo é parte de uma pesquisa mais ampla sobre o tema da Habitação Contemporânea, em curso no Nomads – Núcleo de Estudos sobre Habitação e Modos de Vida, da Universidade de São Paulo, sob orientação de professores de diferentes instituições, envolvendo alunos de graduação e pós-graduação. A pesquisa conta com financiamento da Fapesp, CNPq e da própria USP.

[2] Neste artigo, tomamos o cuidado de descrever uma breve parte da história da habitação e dos modos de vida contemplando, particularmente, os casos frances, japones e brasileiro, por termos tomado, em nossa pesquisa, Paris, Tóquio e São Paulo como exemplos emblemáticos de metrópoles ocidentalizadas e industrializadas. As grandes etapas históricas referentes a estas tres realidades são, em linhas gerais, semelhantes, apesar de terem duração e ocorrerem em momentos, às vezes, bastante distintos. De qualquer modo, nosso intuito principal nestas linhas introdutórias é o de expor a tendência convergente das maneiras de morar nestas áreas, a partir da chegada dos efeitos da Revolução Industrial inglesa, que incluem a disseminação de informações através dos meios locais de comunicação de massa.

[3] "The medieval home was a public, not a private place". Rybczynski, W. Home - A short history of an idea. New York: Penguin Books; 1987. p. 26.

[4] Nina Leibman, em seu livro "Living Room Lectures: The Fifties Family in Film and Television", acrescenta que qualquer personagem que não exibisse estes traços com clareza, ou que adotasse traços do outro sexo, seria visto como um desequilibrado, se fosse um homem , ou como um ser diabólico, se se tratasse de uma mulher. Leibman, N. "Living Room Lectures: The Fifties Family in Film and Television". Dallas: University of Texas Press, 1995.

[5] Supomos que tal processo, iniciado durante a Idade Média com as separações preliminares entre, de um lado, membros da família do patrão e, de outro, empregados e aprendizes vivendo sob o mesmo teto, tenha atravessado o século XIX, reafirmando a opção burguesa de nuclearização da família, e estenda-se até os nossos dias, em direção à individualização extrema: uma sociedade formada, basicamente, por singles vivendo sós. Não se trata, certamente, de uma evolução linear, regular e unívoca. Mas, incontestavelmente, longa e dificilmente reversível.

[6] Berquó, E. A família no século XXI: um enfoque demográfico, in Revista Brasileira de Estudos de População, volume 6, no 2; julho/dezembro 1989.

< voltar textos nomads

< voltar nomads_livraria