Um toque de imaterialidade:
o impacto das novas midias no projeto do espaço doméstico

Marcelo Tramontano, Anja Pratschke, Marcos Marchetti

Como citar esse texto: Tramontano, M., Pratschke, A., Marchetti, M. Um toque de imaterialidade: o impacto das novas mídias no projeto do espaço doméstico. In: Del Rio, V.; Duarte, C.; Rheingantz, P.. (Org.). Projeto do lugar. Rio de Janeiro: Contracapa/ProArq, 2002, v. , p. 341-356.

Anos 1990, fim de século. As idéias de interatividade e de quase infinitas possibilidades de ‘existências virtuais’ são algumas primeiras manifestações do surgimento das chamadas ‘novas mídias’, exponenciadas, por exemplo, pela banalização dos sistemas televisivos a cabo e via satélite, do sistema de telefonia celular e da Internet. O que se imagina, a priori, é que estas novas mídias e o leque de possibilidades que elas abrem venham a influenciar e redimensionar distintos nacos da vida cotidiana. Os escassos estudos sobre os supostos impactos causados pela sua entrada no espaço doméstico costumam mesclar, indistintamente, situação atual e tendências futuras, em geral superestimando estes impactos, e atribuindo à moradia contemporânea características que ainda se situam em um futuro mais ou menos próximo. É verdade que os modos de vida tem sido alterados também pela possibilidade de se receber informações sobre outras culturas e hábitos, produto de uma combinação entre deslocamentos concretos – viagens, por exemplo – e deslocamentos virtuais – mídias eletrônicas, documentos impressos, etc -, e que estas alterações se acentuam a partir do atual aumento do fluxo de informações. O presente artigo pretende analisar mais atentamente o interior desta habitação contemporânea urbana, ocidentalizada, sob influência cultural metropolitana, no sentido de esclarecer as principais componentes deste processo.

Na atual era da Informação e da sociedade pós-industrial, como definidas por Paul Virilio em seu livro L'inertie polaire, as novas mídias trazem consigo a promessa de ampliar as facilidades da uma sociedade tecnocrata, além de determinar o redesenho do espaço doméstico e, em outra escala, os modos comportamentais nas áreas sob influência cultural metropolitana. À medida em que os meios de comunicação se potencializam, conferem às habitações – que, na anterior era da Máquina, precisavam localizar-se dentro dos limites geográficos da metrópole para estar próximas às fontes de informação -, a liberdade de funcionar à distância, relacionando-se entre si em uma esfera virtual, quase independentemente do espaço concreto. Reuniões, encontros, compras, mesmo viagens parecem tender a prescindir de espaços concretos, podendo valer-se de sua existência na forma de bits, menor parte da informação digitalizada e, portanto, menor parte a que este mundo virtual pode ser reduzido.

No início do século XX, em um momento em que a mecanização do espaço doméstico ainda pertencia a um futuro distante, a máquina de escrever revelava sinais de um novo maquinário auxiliando as tarefas cotidianas. Ao surgirem nos espaços de trabalho, os computadores – talvez primeiros herdeiros da máquina de escrever – são, ainda, impensáveis no contexto doméstico, devido a suas grandes dimensões e seu preço elevado. À sociedade pós-Segunda Guerra restou incorporar aos seus modos de habitar as novas e ainda incipientes mídias e todo o equipamento que lhes davam suporte, efeito das revoluções tecnológicas que contavam com a ajuda certa dos profissionais de marketing. Decorrem daí manifestações significativas no redesenho do espaço doméstico e na redefinição de suas funções, e toma corpo a idéia de superequipamento, disseminada, principalmente, através da publicidade e do cinema. Já no imediato pós-guerra, as atividades dos escritórios se viram otimizadas pelos meios de comunicação à distância. Esta idéia de otimização do trabalho profissional acaba sendo traduzida para as necessidades domésticas e os computadores começam a fazer parte do equipamento da habitação em meados dos anos 1980, inicialmente de maneira tímida, elitizada, para banalizarem-se na habitação das classes mais abastadas na década seguinte, já chamados de personal computers. Possibilitavam, num primeiro momento, a realização das atividades de trabalho profissional em casa, minimizando a necessidade de se estar presente na empresa. Em seguida, passaram também a auxiliar tarefas tipicamente domésticas, tanto no gerenciamento da habitação, como em atividades de lazer e entretenimento. Percebe-se, a olho nu, como a mecanização, na primeira metade do século XX, foi gradativamente substituindo a mão-de-obra humana no espaço da habitação, e alterando, por exemplo, o status da dona de casa, que passou então a gerenciar ou realizar pessoalmente muitas tarefas auxiliada apenas pelas então novas máquinas. Seria legítimo e relevante nos perguntarmos o que aconteceria com esta personagem a partir da inserção de novos equipamentos eletrônicos e novas mídias no seu universo?

Com o entendimento das características, possibilidades e natureza das antigas e novas mídias e a análise do cenário histórico e no contexto que elas despontam, torna-se possível entender sua real importância no estabelecimento de critérios para o redesenho do espaço doméstico. Essa importância pode ser verificada através da constatação e caracterização dos seus impactos - ou, eventualmente, a ausência deles - no comportamento e na vida cotidiana metropolitana. Numa primeira e rápida classificação, propomos uma divisão destes impactos em duas instâncias: impactos diretos e impactos induzidos.

Os impactos diretos seriam aqueles já verificados no interior das habitações, como uma primeira e ainda tímida manifestação das mudanças causadas pelas novas mídias e são revelados nos usos e funções dos espaços da habitação. Exemplo básico destes impactos é o crescente tempo de permanência da família metropolitana no espaço doméstico, motivada pela possibilidade de executar tarefas no espaço virtual – como trabalhar, comprar, lazer,... –, antes só possíveis com um deslocamento físico – e as conseqüentes demandas de tempo – no espaço concreto. Ultrapassando os limites da moradia, o uso de equipamentos móveis, como laptops e telefones celulares, possibilita a realização – eventualmente, a transferência – de funções tradicionalmente ligadas aos interiores domésticos em todo o território urbano, recolocando a noção de habitar a cidade, como já preconizava o grupo Archigram, nos anos 1960. Os impactos induzidos relacionam-se com as transformações mais subliminares verificadas nos comportamentos. São, na verdade, alternativas e possibilidades que as novas mídias trazem consigo, tão generosamente amplas quanto incertas. Por um lado, o conceito de telepresença, como formulado pelos historiadores da Humboldt-Berlin Universität Oliver Grau e Ingeborg Reichle,[1] desperta no homem um desejo de estar virtualmente em outros lugares, verificado, por exemplo, em obras de arte de diversas culturas ao longo dos séculos. Também a noção de não-linearidade, ponto de partida e de chegada de grande parte das novas linguagens utilizadas na produção do espaço virtual, reflete-se cada vez mais tanto na estrutura de espaços domésticos desierarquizados – os lofts, por exemplo -, como na atual alternância e redefinição de papéis por que têm passado os membros dos grupos familiares. Como exemplo de impactos induzidos, pode-se, ainda, pensar em como será a mídia televisiva em um futuro possivelmente próximo, a partir desta observação de Nicholas Negroponte, diretor do Media Lab, do MIT: “O futuro da transmissão de programas televisivos está mudando de forma radical, e logo você não estará satisfeito com a seleção oferecida a seu vizinho nem com a necessidade de ver o que quer que seja num horário específico. Por esta razão, as emissoras de TV a cabo estão raciocinando cada vez mais como companhias telefônicas, com sua série de comunicações e vias livres. Na verdade, daqui a vinte e cinco anos pode não haver diferença alguma entre o cabo e o telefone, e não apenas no sentido empresarial, mas também em termos da arquitetura da rede.”[2]

No que concerne, especificamente, as alterações identificáveis no espaço doméstico, uma leitura rápida permite agrupá-las em quatro níveis principais:

1. A relação entre os membros do grupo familiar. A escolha entre convívio e reclusão se faz em função da banalização da televisão a cabo e do conceito de home theater, do micro-computador conectado à Internet, da presença destes equipamentos e de aparelhos telefônicos nos diversos cômodos da moradia;

2. A relação entre membros do grupo e as novas mídias. A possibilidade de interatividade que muitas destas novas mídias oferecem, o que constitui uma tendência inequívoca, deixa supor que a experiência mediatizada é concreta. Na verdade, ela é apenas uma representação da realidade concreta, ou, no máximo, uma simulação;

3. A relação entre membros do grupo e pessoas extra-grupo. Na era dos elétrons, como propõe Paul Virilio, isolar-se significa, inversamente, conectar-se com o mundo. A reclusão em um quarto de dormir equipado, por exemplo, com um computador conectado à Internet, deixa de ser uma opção necessariamente solitária, como anteriormente;

4. A alteração da função dos cômodos. Definida pela introdução dos equipamentos aqui mencionados, a função dos cômodos da casa convencional permanece em constante alteração. Este processo pode complicar-se com o desenvolvimento de novos equipamentos, aliás em curso, concentrando, por exemplo, televisão, telefone e computador ligado à Internet. A sobreposição de funções não está prevista no modelo da habitação convencional.

Já o discurso sobre a imaterialidade da habitação e suas conseqüências, como formulado por William Mitchell, situa-se ainda no terreno das tendências – claramente verificáveis, aliás –, que incluem uma interatividade ainda maior, ligada a estratégias de marketing, e supõe experiências de imersão total em ambientes virtuais, como, por exemplo, no caso da televisão holográfica, já em estudo. Apesar de não se saber exatamente se a distância temporal que nos separa destes desenvolvimentos é grande ou não, parece necessário que o projeto da habitação contemporânea comece a considerar:

1. Possibilidades de flexibilização do espaço, tanto através da alternância como da sobreposição de funções, e as questões técnicas aí implicadas;
2. A priorização de dispositivos garantindo privacidades, através de uma revisão da estrutura espacial convencional;
3. Possibilidades de flexibilização do uso de mobiliário e equipamentos, a exemplo dos escritórios.

Não é difícil perceber que, ao lado de uma infinidade de outros critérios que intervêm no processo projetual da Arquitetura, estes impactos sugerem grandes e significativas mudanças no espaço das habitações, ainda que a grande maioria dos arquitetos pareça relutar em tocar nesse assunto. De qualquer forma, é curioso notar que boa parte das pesquisas intermídias e suas interfaces com o mundo concreto têm sido desenvolvidas por arquitetos em centros de pesquisa norte-americanos e europeus, realidade ainda pouco comum no Brasil. Centros como o Media Lab, do MIT, e arquitetos como Roger Silverstone, da University of Sussex, William Mitchell, autor do incontornável City of Bits e diretor da School of Architecture em Harvard, e Marcos Novak, da University of Texas em Austin, desenvolvem pesquisas relacionando novas mídias e Arquitetura. O assunto é vasto e novo o suficiente para permitir controvérsias, mas, ao mesmo tempo, instiga pesquisas e posturas diversas.

[1] Grau, O., Reichle, I. Legend, myth and magic in the history of telepresence. In: Anais. Simpósio Invenção – Thinking the next millenium. São Paulo: Instituto Itaú Cultural, agosto 1999. p. 31.
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[2] Negroponte, N. A Vida Digital. São Paulo: Cia. das Letras, 1995. p. 39.
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