TÂNIA CARDOSO

Tânia Cardoso é licenciada em Arquitetura pela UTLisboa e mestranda em Urbanismo pelo PROURB, Universidade Federal do Rio de Janeiro. A sua pesquisa compreende as Histórias em Quadrinhos como uma mais-valia para o método científico de investigação, representação e crítica da cidade.


Como citar esse texto: CARDOSO, T. AS TRANSFORMAÇÕES NA CIDADE REPRESENTADAS NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS: CHICAGO VISTA POR CHRIS WARE. V!RUS, São Carlos, n. 9 [online], 2013.

Resumo

As cidades, do inicio do século XX, imaginadas nas histórias em quadrinhos, refletem as problemáticas vividas pelas grandes cidades norte-americanas dessa época. As várias questões colocadas pelos sociólogos urbanos, como a imigração, a criação de slums, a criminalidade e individualidade são tomadas como pontos de partida para a caracterização das cidades nas histórias em quadrinhos. É possível verificar, claramente, nas HQs de Chris Ware, um profundo entendimento da sociedade e da cidade de Chicago, aquando das grandes transformações modernistas, focando a nostalgia sentida pelos habitantes, relativamente aos processos de transformação na cidade e a sua impotência face ao seu desenvolvimento e ao progresso. Através da representação em HQ é possível ter um outro entendimento da apreensão e do olhar do espaço urbano, através do ponto de vista do personagem, captando o leitor para questões críticas e importantes para a compreensão da complexidade da cidade.

Palavras-chaves: Histórias em quadrinhos; transformação das cidades; memória urbana; individualismo; apreensão do espaço urbano.


Introdução

Hoje em dia questiona-se a forma como as ideias, conceitos, formas e modelos são transferidos para outros lugares, apropriados, misturados com novas culturas e transformados em elementos novos. Essa mistura processa-se, segundo Christian Topalov (2012), como numa nebulosa na qual os profissionais estão separados e diferenciados, mas envolvem-se constantemente – em competição e concorrência - uns com os outros. O que os liga de forma mais forte é a sua linguagem comum. Topalov dá como metáfora a este movimento de palavras, o acelerador de partículas, lança-se a partícula e observa-se a sua natureza transformadora ao longo da nebulosa - o campo de estudo - onde se movimenta. Esta nebulosa é pontuada de viagens, de palavras, de livros, desenhos e reflexões

É interessante perceber que tanto os atores que participam nesta viagem, como os meios no qual as ideias viajam, têm um importante papel na própria transformação do objeto. Não se trata de uma difusão, nem de uma influência do ponto de partida do objeto, mas sim, de uma marca, um empréstimo, uma seleção e tradução do objeto por outras culturas. Cada tipo de modelo provoca reflexões diferentes a cada tipo de ator, dando origem a várias interpretações. Segundo Topalov 1 é uma forma de olhar que nada tem de casual: através da informação, seleção e reflexão do objeto, há a sua reconstrução.

Este artigo surge no desenvolvimento da dissertação de mestrado Crónicas Urbanas: Representação e crítica da cidade através das Histórias em Quadrinhos, pelo Programa de Pós-Graduação em Urbanismo na UFRJ. Esta pesquisa pretende explorar os vários modelos e estratégias utilizados pelos artistas de HQ, de forma a facilitar o entendimento e compreensão da cidade e estabelecer uma comparação com as experiências com HQ estabelecidas pelos arquitetos. O objetivo é sintetizar estas análises numa experiência ou modelo de exploração da cidade em formato HQ. No seguimento desta pesquisa surgiu a questão dos conceitos explorados pela sociologia urbana e como eles são, também, explorados no âmbito das HQs como elementos críticos em consequência das transformações na cidade e na vida urbana. Por outro lado, é interessante entender de que forma estes conceitos e ideias viajam entre campos diferentes, consolidando-se numa Historia em Quadrinhos, elemento híbrido, na qual é feita uma síntese dos vários conceitos.

As cidades nas Histórias em Quadrinhos não são apenas representações de cidades reais. Os seus autores criaram-nas através das suas leituras, descrições, críticas e estímulos dados pela cidade em seu redor. São representações de cidades reais com múltiplas facetas e grande complexidade: as vivências, as texturas, os cheiros, as cores, os movimentos de quem passa, as culturas que nela deixaram a sua marca ao longo de gerações, as ‘emoções’ da cidade refletidas nas pessoas que a habitam e as suas sensações expressas ao longo do tempo em paredes de pedra ou tijolo e nas calçadas do chão.

Longe de serem simples espelhos ou cópias da realidade, as HQs carregam consigo um olhar interpretativo e reflexivo do autor, aproximando-se do conceito de representação de Stuart Hall (1997, p.16) no qual representação é a utilização de uma linguagem para dizer algo significativo a outrem. A representação torna-se parte essencial de um processo pelo qual o significado é produzido, comunicado e trocado entre culturas. Existe, portanto, um processo de codificação intencional na imagem da HQ – a utilização de signos visuais, ícones e índices - que permite a significação dos conceitos e das relações conceituais entre eles. Este processo, em conjunto com a cultura e história de cada leitor, permite a reflexão e interpretação do objeto representado (HALL, 1997, p.18-21). As primeiras Histórias em Quadrinhos tinham, por objetivo, incluir as grandes massas semi-analfabetas e os imigrantes não-falantes de inglês, num meio que lhes era hostil. A simplicidade nos temas apresentados e os personagens estereotipados permitiam uma identificação com os seus leitores que, longe de as tomarem como ofensas, sentiram que estas histórias eram escritas acerca das suas experiências, ofereciam um escape da realidade e lhes eram apresentadas num formato compreensível e acessível. Assim, como os leitores mais humildes iriam divertir-se com a história, outros iriam interpretar as escolhas de desenho e de escrita do autor, percebendo a sua intenção de outro modo.

São visíveis, em algumas Histórias em Quadrinhos, os problemas que atrapalhavam as cidades naquela época e assombravam a mente dos seus habitantes. Deste modo, é possível estabelecer várias relações com as preocupações que os sociólogos urbanos tinham quando começaram a interessar-se pelo estudo da cidade e da sua comunidade. Dentro destas representações destaca-se a representação de Chicago na obra de Chris Ware, na qual se destaca a História de Quadrinhos/apresentação animada Lost Buildings.

Figura 1. Representação do Rothschild Building em Chicago antes e durante a sua demolição.Em: Lost Buildings de Chris Ware e Ira Glass (recorte da autora na HQ/ apresentação).

Chicago: Inovação e Transformação

Ao longo dos séculos XIX e XX, a cidade de Chicago foi caracterizada pelo seu tempo acelerado e por um crescimento fulgurante. Isto fez com que a cidade ficasse descaracterizada, caótica, poluída e com uma população crescente. A maior parte da burguesia preocupava-se também com a crescente heterogeneidade étnica e cultural na cidade.

Segundo Jean Castex 2 , o plano apresentado em 1893 para a cidade de Chicago, por Daniel Burnham na Exposição Columbia é o que permite o crescimento muito intenso da cidade apesar de toda a sua controvérsia3.

Chicago, ao contrário de outras cidades, estava livre de uma história longa ou de uma herança anterior. Esta liberdade era simbolizada pelo grande incêndio e a reconstrução praticamente total da cidade, o que lhe dava um teor sonhador.

Figura 2. Representação da Exposição Columbia em Chicago em 1983. Em: Jimmy Corrigan: O menino mais esperto do Mundo de Chris Ware.

Daniel Burnham é, segundo Peter Hall, considerado o “profeta” do Movimento City Beautiful 4 . O plano da White City 5 tem como ideia base a monumentalidade e a restauração da harmonia visual e estética, das quais surgiria, consequentemente, a harmonia social. O seu rápido desenvolvimento trouxe inevitavelmente à cidade uma grande onda de imigrantes à procura de trabalho, que culminou numa questão racial muito forte 6 com a degradação da qualidade de vida e o aparecimento dos slums. Temas que os pesquisadores – Robert Park e Ernest Burgess (2009 [1921]) - da Escola de Chicago tomaram e aprofundaram com a criação da Sociologia Urbana e da Ecologia Urbana.

A Escola de Sociologia de Chicago, através da pesquisa de campo7, observava de forma direta e contínua as communities que iam crescendo. Park e Burgess começaram a colocar questões abstratas na sociologia urbana8 e na ciência política que não só conceberam conhecimento científico da cidade mas que conceberam a própria cidade como um resultado de uma síntese de um ambiente complexo e em constante desenvolvimento. Há uma crescente importância das paisagens construídas pelo homem e da determinante qualidade interna dos grupos sociais. As construções da cidade 9 serviam o duplo propósito de mobilidade e contenção da vida comunitária. Os seus estudos foram grandemente influenciados pelo pensamento de Simmel, que se tornou uma referência nos estudos acerca das cidades. Park e Burgess (2009 [1921]), ancorados nos seus ensinamentos, estudaram acerca dos problemas da cidade como a marginalidade, o crime e a delinquência enquanto gerados pela dificuldade da integração social dos imigrantes na metrópole.

Em The City, Park (1984[1925]) afirma que a cidade seria um produto da natureza humana porque representa um determinado estado de espírito com a sua cultura, costumes e tradições próprias – uma cultura urbana diversificada. A fascinação de Robert Park pela “história natural” - um conceito que para Park era instanciado pelo ciclo da relação das espécies e podia ser visto em todo o lado - nos gangs, nas greves, nas revoluções – levou-o ao estudo da Ecologia Urbana 10 . A linguagem da Ecologia Urbana vai compreender a ação entre o controlo, o processo, a desorganização da sociedade da cidade e prevêem novas instituições de constituição da sociedade.

A situação da cidade de Chicago, entre 1919 e 1939, repousa em determinadas palavras-chave como especialização 11 , competição 11 e congestão 13 . A cidade torna-se um grande foco de industrialização, arranha-céus, inovações construtivas como elevadores, todas as ferrovias chegavam a Chicago, a energia era gerada constantemente e a iluminação artificial da cidade fá-la competir com Paris pelo título de Cidade das luzes. Título que carrega, no seu desenvolvimento, ao longo do século XX e que promove as diversas transformações na cidade, em prol do seu desenvolvimento e progresso pelo Movimento Moderno e pelo Estilo Internacional.

Memória urbana e individualismo em Lost buildings

É notório o interesse de Chris Ware, artista de HQ, pela cidade em todas as suas histórias. Em várias ele toma como ponto fulcral o edifício – ícone – enquanto elemento de relação do Homem com a Cidade e da forma como este reconhece a passagem do tempo e a memória urbana. Desenvolve de forma mais intensa esta relação em Lost Buildings: uma colaboração de rádio e imagem com Ira Glass - locutor do National Públic Radio - sobre o historiador cultural da cidade de Chicago Tim Samuelson, o seu mentor Richard Nickel – fotógrafo e preservacionista urbano – e o seu amor pelos edifícios de Louis Sullivan.

Neste projeto, onde o artista projeta os seus desenhos para um público ao vivo, Ware faz uma interação entre ambos, HQ e estrutura do edifício. Desta maneira, Ware consegue manipular o mapeamento dos vários conceitos que pretende explorar na descrição da cidade, através dos seus ícones perdidos – a relação entre o estético e o vernacular, a melancolia e o prazer, a solidão e a pertença, a história e o presente – na estrutura formal da narrativa das HQ’s (RAEBURN, 2004). Desta forma, ele enfatiza as visões coletivas, esperanças e sonhos embebidos nos fragmentos da vida diária dos habitantes da cidade que descreve. Ware toma para si o conceito de Goethe quando diz:

O que se faz com as HQ’s é, essencialmente, pegar em pedaços de experiência e congelá-los no tempo. […] Nas HQ’s as tiras ganham vida quando são lidas, pela experiência da leitura como num compasso musical. […] Outra forma é o afastamento e a vista da composição de uma só vez, como se de uma fachada de um edifício se tratasse […] como se veria uma estrutura. […] Arquitectura é como música congelada. 14 […] Este é a questão estética chave no desenvolvimento de uma HQ como uma forma de Arte. (Ware citado por RAEBURN, 2004, p.25 – 26, tradução nossa) 15

Os níveis de sensorialidade e multiplicidade no espaço urbano vão aumentando com a sua complexidade, mas esta provoca também o aumento do sentimento de alienação e de desenraizamento. A perda da experiência espacial como catalizador de significação do espaço urbano remete para uma sensação de nostalgia por parte do habitante (McQUIRE, 2008). Ware representa este sentimento de perda nas suas HQs através de vários momentos do estado de degradação dos edifícios da cidade de Chicago e da sua consequente destruição. O autor vê na ruína destes edifícios a ressonância do sentimento de perda como evidência da passagem do tempo. Ao mesmo tempo, evoca o seu passado grandioso através da nostalgia, mostrando nos seus personagens, um sentimento de angústia ao confrontarem as suas memórias de experiências urbanas anteriores às transformações na cidade e a vida urbana contemporânea.

Figura 3. Representação do Garreth Theatre antes, durante e após a sua demolição. Em: Lost Buildings de Chris Ware e Ira Glass (recorte da autora na HQ/ apresentação).

A ruína é vista como um todo através da relação com o ambiente construído e permite uma reflexão no conceito de indiferença que a cidade moderna provoca no indivíduo explorando o conceito de individualismo de Georg Simmel (1998). Para Simmel, na grande cidade, a liberdade é mais facilmente exercida em relação à pequena comunidade. No entanto, o individualismo proveniente dessa noção de liberdade concebe o Homem como ser universal e genérico.

No século XVIII, o Homem tornar-se-ia igual perante os outros pela libertação em relação à opressão exercida pelas instituições sociais, como o Estado ou a Igreja. O tipo metropolitano é racional, afligido pelas forças contraditórias que tendem a esmagá-lo pelo anonimato e que, ao mesmo tempo, dá-lhe autonomia individual. No século XIX há uma constante diferenciação entre os indivíduos – há uma individualização, por meio da divisão social do trabalho - cada indivíduo é único, específico e insubstituível (SIMMEL, 1988). Esta condição coloca o indivíduo em conflito com a sociedade tendo em vista as transformações impostas na cidade pós Revolução Industrial, provocando a perda de laços tradicionais e o crescimento da sensação de anonimato e de individualismo na grande cidade (VIEIRA, 2012).

Para Simmel (1998), o homem citadino tem uma atitude racional que interioriza o princípio nivelador da economia monetária. A atitude blasé é caracterizada pela reserva e pelo embotamento da capacidade de discriminar: coisas, pessoas e experiências são percebidas como indiferentes pelo sujeito blasé (VIEIRA, 2012, p.35). Simmel caracteriza a indiferença como blaserie, típica do tipo metropolitano moderno.

Figura 4. Representação de um suicido e da aparente curiosidade que se torna quase imediatamente indiferença dos habitantes da cidade. Em: Jimmy Corrigan: O menino mais esperto do Mundo de Chris Ware.

Figura 5. Representação da experiência de Tim Samuelson ao deambular pelas ruas de Chicago enquanto o resto dos habitantes são representados por silhuetas: anónimos e indiferentes.Em: Lost Buildings de Chris Ware e Ira Glass (recorte da autora na HQ/ apresentação).

Pode-se, também, evocar na representação de Chicago de Ware, o conceito da figura do flâneur 16 , de Walter Benjamin. Samuelson destaca-se como um indivíduo isolado da multidão deambulando e observando os edifícios à medida que percorre a rua e grava na sua memória, numa atitude talvez um pouco nostálgica, os estímulos transmitidos pela cidade. Ao contar a experiência de Tim Samuelson no Garrick Theatre, o trabalho de Ware mostra, simultaneamente, imagens num painel inferior onde este, ainda criança, anda numa rua movimentada da cidade a olhar para os edifícios, enquanto o resto dos cidadãos 17 passa, de forma mecânica, indiferente ao ser redor.

O seu trabalho parece quase um arquivo que ilumina os elementos em ruína da História da modernidade que ficaram negligenciados, perdidos e esquecidos. Mas, se a partir da imaginação da História não como um catálogo de artefatos ou relíquias, mas como uma experiência vivida, um tecido social rico, poder-se-ia reconstruir a ideia de ruína como um objeto total. (WORDEN, 2010) É um processo de contextualização ou seja, ela é completa em relação ao meio e à História onde se insere.

A partir dos elementos representados em Lost Buildings (2004) de Ware é possível perceber a cidade de forma fragmentada mostrando os comportamentos típicos e múltiplos que existem na vida da cidade moderna. Os ícones da cidade representados na HQ tornam-se simultaneamente um ato de imaginação e de contemplação e propõem uma reflexão acerca de como o espaço é utilizado pelos seus personagens. Lost Buildings procura uma relação dialética entre a experiência vivida e a História, a individualidade e o ambiente construído (WORDEN, 2010, p.109). Remete a um desejo interminável de experienciar o passado através do ponto instável do presente, reflexão também desenvolvida por Aldo Rossi (2001[1966]) que afirma que os elementos primários da cidade, quando realmente vivos e habitados, são como um passado que ainda experimentamos no presente.

Figura 6. Representação do percurso elaborado por Tim Samuelson e por Richard Nickel pela cidade de Chicago com os respectivos edifícios de Louis Sullivan destacados. Durante a HQ/filme este percurso vai dimnuindo e os edificios de Sullivan vão desaparecendo do mapa. Em: Lost Buildings de Chis Ware e Ira Glass (15min.06seg.).

A fragmentação das imagens, estética e melancólica expõe a contingência e a falta de permanência das cidades da América moderna – a falta de pertença e de identidade, assim como a perda dos valores de comunidade existentes nos ambientes tradicionais. O uso de ícones arquitetônicos no trabalho de Ware serve para deter o fluxo temporal da narrativa, carregando-a de elementos históricos num contexto que destrói a autonomia da ficção e força conexões mnemónicas da experiência do leitor. Durante a apresentação, a vida e o percurso dos seus personagens equiparam-se diretamente à transformação em curso na cidade de Chicago. O traço do real, dos edifícios desenhados a partir das fotografias de Richard Nickel é, ao mesmo tempo, imaginário, objetivo e subjetivo, sempre rendido às expressões e sentimentos do autor da sua representação e submetidos à mensagem que se pretende transmitir (WORDEN, 2010, p.111 - 112). Desta forma, o autor procura integrar na sua audiência um sentimento de pertença familiar durante a apresentação, para que a própria arquitetura seja vista como um objeto sentimental evocando a experiência imediata do espaço e a sua consequente efemeridade.

No final, pode-se observar um paralelismo entre as épocas e as estruturas dos edifícios que são mostradas através de um elemento circular – que evoca a “wrecking ball” 18 . Ela aparece como interrupção na imagem homogénea de vidro e aço dos edifícios modernos evocando ao mesmo tempo a memória e o futuro. A memória, porque é utilizada a esta forma na história para anotar momentos passados e o futuro, porque evoca a bola utilizada nas demolições no sentido em que um dia também este edifício irá ser demolido para dar lugar a algo diferente. Ele tenta representar que a construção do presente apenas pode ocorrer na sua relação com o passado (WORDEN, 2010).

Figura 7. Evocação do antigo Stock Exchange Building de Chicago com recurso à imagem da wrecking ball tanto no edifício atual como no edifício antigo com o objetivo de representar a efemeridade da cidade Americana. Em: Lost Buildings de Chris Ware e Ira Glass(recorte da autora na HQ/ apresentação( imagens entre 21min. 40seg. até 21min. 56seg.).

Conclusão

Existe uma interação muito forte entre profissionais e uma grande importância na cultura visual arquitetônica e urbanística. Esta vai se construindo a partir da reflexão sobre as imagens transmitidas nas revistas, redes de sociabilidade e nos jornais que eram interpretados por cada ator e por cada cultura. Parece impossível examinar uma imagem sem fazer comparações: seja com outra imagem, seja com o mundo real ou com uma memória sensorial. Para Michael Baxandall (1985, p.58-59), a imagem funciona como uma troca entre o artista e o leitor/espectador, ambos existentes como parte do grande contexto histórico mundial.

A obra de arte ou a arte da vida é experimentada principalmente através da visão e dessa forma comparamos, aprendemos e objetivamos para o entendimento. Examinando não só a obra, mas também as pretensões filosóficas e científicas do seu tempo, é possível revelar paralelos entre os métodos de criação das imagens e os desenvolvimentos das ideias da cultura visual. Estas imagens podem ser conectadas através de textos e mostram padrões de como a intenção do artista pode ser reconhecida.

Vários estudiosos da geração de Simmel, Park e Burguess viram a cidade de Chicago como emblemática e moderna: a típica cidade americana. O programa da Escola de Sociologia de Chicago criou ondas de projetos acerca dos mais variados temas dos quais se destacam as pesquisas sobre guetos, hobos, gangs, delinquência, prostituição, alienação, indiferença e sobre slums. Da mesma forma os artistas captaram a informação e vivência que Chicago transmitiu, interpretaram e expuseram ao mundo as suas reflexões e preocupações resultantes da vibração, constante transformação e crescimento das cidades do inicio do século XX e as suas transformações ao longo do tempo.

As HQs apareceram como produto da modernidade e isso reflete as suas fortes conexões com as rápidas transformações, inovações das grandes cidades, assim como em relação às pessoas que nelas vivem. Mais que simples descrições de modos de vida urbanos e de ícones citadinos estas HQ’s são, acima de tudo, sínteses da interpretação das concepções urbanas de determinada época - da virada do século XIX para o XX e souberam captar nas suas imagens e histórias os verdadeiros problemas e condições do imaginário urbano. Estas cidades representadas ora como espaços de conhecimento, liberdade, transformação e progresso, ora representadas pelas mais nostálgicas críticas de perda dos laços comunitários anteriores e da forçosa integração a um ambiente moderno caótico, poluído e barulhento, que apregoava a linha reta, a funcionalidade e o traçado urbano regulador como salvador das cidades decadentes e enfermas19.

Por outro lado, as HQ’s têm pelas características próprias da sua linguagem, condições para não só permitir a transmissão das ideias e costumes originários noutras épocas, mas também, para confrontar o leitor ao pensamento e crítica da cidade. O artista pode passar estas mensagens e provocações de várias formas. Pode transmitir mensagens a partir da justaposição de vários pontos de vista, dados pelo olhar dos seus personagens. Pode também utilizar a justaposição de várias épocas estabelecendo comparações e permitindo ao leitor analisar e tirar as suas próprias conclusões acerca dos fatos e das ações ocorridas nelas e qual o seu significado.

Ao mesmo tempo em que o artista expõe os seus pensamentos no desenho, pode também levar o leitor a uma identificação com as situações descritas na HQ. Esta identificação remete a sentimentos e memórias que provocam no leitor uma imersão total na leitura. Uma das questões mais importantes na leitura de HQ é a questão da leitura do não-dito. O espaçamento entre quadradinhos e o congelamento do momento certo em imagem permite ao leitor ler /imaginar o que ficou por dizer nesse espaço e tirar as suas próprias conclusões.

Referências Bibliográficas

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1Informação fornecida verbalmente por Christian Topalov na disciplina “Entre transferências e tradução: como estudar a circulação internacional de modelos no campo da reforma social e do urbanismo?” ministrada no PROURB/FAU/UFRJ em Abril de 2012 organizada pela prof.ª Margareth Pereira.

2Informação fornecida verbalmente por Jean Castex na disciplina “Entre transferências e tradução: como estudar a circulação internacional de modelos no campo da reforma social e do urbanismo?”, ministrada no PROURB/FAU/UFRJ em Abril de 2012 organizada pela prof.ª Margareth Pereira.

3Os conceitos ideológicos que rodeiam a City Beautiful colocam em conflito a invenção e inovação com a continuidade e tradição. Por um lado Louis Sullivan e Frank Lloyd Wright procuram uma cultura e linguagem tipicamente americana, por outro Burnham acreditava que esse “horror a tudo o que era europeu” era uma manifestação de imaturidade e insegurança (HINES, 2000.), uma vez que a América não estava isolada do resto do mundo e era herdeira de uma tradição existente.

4O movimento City Beautiful foi impulsionado pelo crescimento descontrolado e desenfreado das cidades Norte-americanas e inspirado nas questões Higienistas aplicadas nas cidades europeias do século XIX, em forma de grandes avenidas e boulevards (HALL, 1996[1988], p. 94). Considera-se que o movimento foi lançado por Daniel Burnham, com a exposição de Chicago de 1893 e atingido o seu pico com a criação do Plano de Chicago. Procurava criar uma cidade funcional e humana e principalmente restaurar a sua beleza (HINES, 2000).

5No Plano de Chicago Burnham aplicava a sua visão de futuro em toda a região de Chicago com um sistema diagramático de auto-estradas que, de forma inédita, ligavam toda a região e que se cruzavam no centro da cidade de Chicago. O plano descrevia o desenvolvimento de Chicago num raio de 60 milhas via um sistema de boulevards radiais e concêntricas conectando o centro aos subúrbios e ligando os subúrbios entre eles. O centro cívico seria o grande centro do novo projeto, coroado por um edifício com uma cúpula do qual sairiam duas grandes avenidas diagonais, este foi dos poucos elementos do projeto que nunca chegou a ser construído. (CASTEX, 2009; HALL, 1996[1988]).

6 A sua nomeação de White city colocou em cheque a situação naquele momento: seria a cidade branca de grandes edifícios majestosos num ideal de beleza ou a cidade dos brancos reforçando a ideia de segregação e de controle espacial?

7 A noção de pesquisa de campo foi baseada no conceito de contacto direto colocado em prática no século XIX por Jane Addams em Chicago – Hull House - baseado no modelo dos centros de assistência sociais cristãos londrinos. A utilização desta metodologia foi contestada pelos sociólogos fora da Escola de Chicago pelas suas origens no trabalho social e pela falta de confiança na busca de dados nas fontes diretas (HALL, 1996[1988], p.47-52).

8 Ramo da Sociologia que trata do estudo das relações sociais dentro do espaço urbano constituindo-se como base dos estudos sobre cidades.

9Estradas, caminhos de trilhos, canais e outros modos de transporte.

10 A qual utilizava analogias com os mecanismos de competição e cooperação para compreender forças de organização intraurbana numa dinâmica que conduziria o fenómeno urbano a um estado de ordem sócio-espacial.

11Execução de tarefas precisas e remuneradas conforme o seu ofício.

12 Rivalidade entre a classe média que começou a crescer.

13O modo de vida urbano onde a sociedade faz face a um progressismo científico, em conflito com as grandes empresas capitalistas (a questão politica em torno da máfia de Chicago).

14 É importante ressalvar que este conceito de Goethe deve ser interpretado em relação ao contexto histórico onde se insere e às características intrínsecas da HQ.

15What you do with comics, essentially, is take pieces of experience and freeze them in time.[…] In comics you make the strip come alive by reading it, by experience it beat by beat as you would playing music. […] Another way is to pull back and consider the composition all at once, as you would the façade of a building […] as you would look at a structure. […] Architecture is frozen music […] this is, I think, the aesthetic key to the development of cartoons as an art form.” (Ware citado por RAEBURN, 2004, p.25 – 26)

16 Figura típica da modernidade, que diante da perda do olhar contemplativo e centralizado da sociedade moderna, encontra prazer em vaguear e observar o espaço urbano captando os seus aspectos num olhar subjetivo em relação à cultura objetiva e à constante de estímulos causados pela vida nas grandes cidades.

17 Representados em silhueta de forma homogénea e tornando-os parte das massas evocando o conceito que Simmel chama de homem da multidão.

18 Bola de demolição ou bola rompedora. É uma bola de aço ou ferro presa a um guindaste usada na demolição de grandes edifícios. 

19 De acordo com o pensamento Higienista, em que é possível criar analogias entre o corpo social, a cidade e o corpo humano.

TÂNIA CARDOSO

Tânia Cardoso is graduated in Architecture by TULisbon and enrolled at the Masters in Urbanism by PROURB, Federal University of Rio de Janeiro. She is researching the comic book as an asset to the scientific method of research, representation and critique of the city.


How to quote this text: CARDOSO, T., 2013. THE CHANGING CITY AS REPRESENTED IN COMIC BOOKS: CHICAGO SEEN BY CHRIS WARE. V!RUS, São Carlos, n. 9 [online]. Translated from Portuguese by Luis R. C. Ribeiro.

Abstract

The cities of the early twentieth century, as imagined in the comics, reflect the problems experienced by large American cities of that time. Several issues raised by urban sociologists, such as immigration, slums, crime, and individualism are taken as starting points for the characterization of cities in the comics. It is possible to clearly identify in Chris Ware’s comic books a deep understanding of the society and the city of Chicago during the modernist transformations, focusing on the nostalgia felt by its citizens with regard to the processes of change the city was going through and their powerlessness in the face of development and progress. Representations in the comics can shed a different light on how urban space is appropriated and perceived from the characters’ perspective, thereby directing the reader’s attention to important and critical issues for understanding the complexity of the city.

Keywords: comic books; transformations in cities; urban memory; individualism; seizing the urban space