Pedro Oliveira é Doutorando em "Design Research" na Universität der Künste Berlin, bolsista de doutorado pleno pelo CNPq/DAAD. Graduado em Design Gráfico pela UNESP Bauru em 2008, Mestrado em Digital Media pela Hochschule für Künste Bremen em 2012, sempre investigando a relação entre Design e Modos de Escuta.


Como citar esse texto: VIEIRA DE OLIVEIRA, P. J. S. DER BAHNHOFSGEIST: EXPLORANDO A PSICOGEOGRAFIA DO ESPAÇO ELETROMAGNÉTICO. V!RUS, 'São Carlos, n. 9 [online], 2013. Traduzido do Inglês por Luis R. C. Ribeiro. Disponível em: http://www.nomads.usp.br/virus/_virus09/secs/project/virus_09_project_1_pt.pdf. [Acessado em: dd m ano].


Resumo


Este breve ensaio discute o reconhecimento do espaço eletromagnético urbano como um território acústico e suas potencialidades para a criação musical. A partir de conceitos emprestados do Design Crítico e da Psicogeografia, o projeto tenta criar uma zona temporária de “vagar eletromagnético”, apropriando-se do território auditivo da Estação Ferroviária Central de Bremen usando um circuito simples que detecta e amplifica os sinais de telefonia celular GSM e recontextualizando-os em microperformances musicais feito um músico ambulante. Estes experimentos visam ampliar o reconhecimento atual do éter como um território “habitado”. Seu objetivo é também levar o morador da cidade a perceber-se como uma parte intrínseca da mesma, bem como a questionar e envolver-se nas discussões em curso sobre o espaço hertziano e suas preocupações com penetração, vigilância e privacidade.


Palavras-chave

espaço hertziano; design crítico; estudos do som.

Der bahnhofsgeist: explorando a psicogeografia do espaço eletromagnético

Pedro Oliveira

Introdução

Em quantas camadas de percepção uma cidade pode ser descrita, apreendida ou mesmo usufruída? O espaço urbano não é apenas caos e movimento, ou mesmo um estágio para o desenrolar da vida cotidiana, mas também uma tela aberta, repleta de potencialidades por serem reveladas. Da arte de rua para os engarrafamentos, a cidade inspira o ballet de seus habitantes e expira multiplicidade artística. Há, de fato, uma abundância de poéticas ocultas que poderiam e deveriam ser mostradas àqueles que as estão produzindo inconscientemente, pois a cidade está viva, emergente e intrinsecamente mutante.

O ouvir, atentamente ou não, ativamente ou passivamente, é inerente ao processo de descoberta e reconhecimento da cidade em todo o seu potencial, pois ela está plena de tensão sônica. Como Brandon LaBelle (2010) define, a paisagem sonora urbana é parte de um processo político que é participativo, rítmico, compartilhado e intimista, apropriado por diferentes comunidades de várias maneiras, projetando geografias relacionais que extrapolam a discussão pressão sonora versus dor para se tornarem discursos emocionais. Deixa então de ser um mero espaço acústico para se tornar um território acústico.

Ubiquidade

Falar sobre territórios acústicos significa também falar sobre os sons inéditos da cidade, que inundam o éter como ondas de dados de alta frequência que não só levam transmissões, informações de trânsito e pacotes de arquivos digitais, mas também trazem essas geografias relacionais entre as pessoas. Grande parte dos moradores da cidade desconhece a quantidade de dados em que estão imersos e a relevância desses dados para o ritmo e o fluxo da sua rotina diária.

De fato, a tecnologia que envolve o cotidiano urbano de hoje é quase invisível. Celulares, computadores, caixas eletrônicos, por serem largamente utilizados e estarem em quase todos os lugares, tornam-se onipresentes, assim como o fazem suas “peles invisíveis” (Dunne e Raby 2001, p. 20). A comunicação sem fio tece fios de conexão entre lugares fisicamente distantes, trazendo-os todos para o território do intermediário. Onde é que ocorre se não em todos os lugares ao longo do espectro que conecta todos os seus pares? Tais fluxos de dados vão e voltam, saltando, refletindo, absorvendo e invadindo, de forma intermitente, a arquitetura, a paisagem urbana, o éter e os corpos.

Na verdade, o espectro eletromagnético compreende todo objeto eletrônico, o qual produz a radiação que vaza para o espaço e seus objetos mais próximos (Dunne e Raby 2001, p. 8); somam-se a esse cenário telefones celulares, rádio, bluetooth, internet e outras altas frequências e pode-se afirmar que a atmosfera está inundada por um sem-número de diferentes pacotes de informações invisíveis e inaudíveis, a não ser por meio de aparelhos especiais, porém percebidas, sentidas, absorvidas, desviadas e refletidas pelos corpos físicos. Os vários problemas de saúde e segurança levantados por essa situação já foram amplamente discutidos, principalmente através do estudo crítico de projetistas como Dunne & Raby 1 e Auger & Loizeau 2 . Outra abordagem seria perguntar até que ponto os contribuintes ativos, produtores e consumidores dessa arquitetura espontânea e desincorporada estão cientes e compreendem as possibilidades estéticas e poéticas colocadas por essa condição criada pela tecnologia moderna.

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1Veja http://www.dunneandraby.co.uk/content/home. Acesso em: 26 mar. 2013.

2Veja http://www.auger-loizeau.com/. Acesso em: 26 mar. 2013.

As poéticas escondidas da cidade

A cidade moderna é comumente entendida como um sistema autoorganizado e emergente. O autor Steven Johnson, em seu livro Emergence compara os ritmos e padrões organizacionais das cidades às colônias de formigas e outros “insetos sociais”, na medida em que ambos não têm ideia de como suas decisões e ações individuais contribuem para a inteligência coletiva da pauta da cidade (Johnson, 2002, pp. 98-100). Ao tomarem decisões locais de curto prazo, a forma global da paisagem urbana, como a colônia de formigas, é definida no longo prazo. Em outras palavras, os habitantes da cidade estão totalmente inconscientes do que constitui o mecanismo desse organismo vivo em que residem. A Internacional Situacionista (SI), um grupo francês de artistas e revolucionários dos anos 1960, também mostrou uma profunda preocupação com a forma como a cidade e o urbano são vividos por seus moradores, e propôs “uma ferramenta na tentativa de transformar a vida urbana, primeiro para fins estéticos, mas depois, cada vez mais, para fins políticos” (Coverley, 2006, p. 10), por meio de uma disciplina que chamaram de ‘psicogeografia’. Os situacionistas defendiam uma arquitetura urbana plena de possibilidades de experimentação, anarquia e diversão (Sadler, 1998, p 69.) e, embora muitas de suas tentativas arquitetônicas tenham permanecido no papel, a prática de dérive (ou deriva), uma ação espontânea de vagar pelos ritmos internos da cidade, inconscientemente guiados pela arquitetura e geografia para uma experiência estética única do ambiente urbano (LaBelle, 2010; p. 214; Sadler, 1998, pp. 77-78) foi amplamente posta em prática e ressoa até hoje em grupos contemporâneos de psicogeógrafos e andarilhos, continuando a “dar uma resposta política às falhas percebidas na governança urbana” (Coverley, 2006, p. 111). O vagar, uma atividade intrinsecamente sociável, desvendaria então uma cidade única, porém previamente escondida de seus habitantes, como uma “transgressão do mundo alienado” (Sadler, 1998, p. 94).

Essas novas camadas agregadas pelo atual paradigma da comunicação sem fio, onipresente ainda que percebida fisicamente, constituem o território do auditivo, tanto o transmissor quanto o sinal não são nada, apenas frequências, energia física. Em outras palavras, isso significa que tal espaço de dados de frequência também deve ser considerado como parte de um grande espaço auditivo, desde o momento em que se tornam frequências audíveis ou atraem a atenção dos moradores da cidade por meio da utilização de um mediador ou um dispositivo de mediação. Combinando as ideias apresentadas acima, isto é, a paisagem urbana moldada no longo prazo por movimentos e decisões de curto prazo—uma ideia que pode ser facilmente igualdada à forma da paisagem urbana eletromagnética—e a dérive, enquanto uma prática que visa redescobrir a beleza não planejada do urbanismo, o evento propõe-se a “dar uma forma audível ao informe” (LaBelle, 2010, p. 236) de modo a apreciar as capacidades acústicas da psicogeografia hertziana como meio de revelar as poéticas escondidas da cidade. Entendidas como fantasmas da vida cotidiana, elas estão contidas na experiência sublime da cidade. Este estudo propõe-se a desvendar uma parte específica do éter velado e explorar suas potencialidades estéticas e musicais como um relato performático da arquitetura desencorpada. Ainda que a ideia de ampliação do espectro eletromagnético não seja nova, amplamente explorada nos estudos de Christina Kubisch 3, Shintaro Miyazaki4 e outros, em termos de “trajetos musicais”, cartografias e bancos de dados, a exploração de suas propriedades enquanto performance musical é raramente levada a cabo5 .

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3Disponível em: http://www.cabinetmagazine.org/issues/21/cox.php. Acesso em: 13 mai. 2013.

4Disponível em: http://www.algorhythmics.com/persons/miyazaki/. Acesso em: 26 mar. 2013.

5Pode-se afirmar que os “percursos elétricos" de Kubisch também são uma forma de performance musical. No entanto, no caso dela, ela mesma funciona como um guia, apontando explicitamente quais pontos são “potencialmente musicais” e não deixa muito espaço aberto para descobertas fortuitas. Além disso, os participantes selecionados têm de usar fones de ouvido, o que torna o percurso um tanto seletivo e excludente para quem está ciente do que está acontecendo (o autor participou de um dos eventos em 25 de novembro de 2011, em Colônia, Alemanha).

DER BAHNHOFSGEIST: o projeto

Áudio 1. (6’09’’): “Der Bahnhofsgeist”, Tomada 1. Gravações de 25’ da estação de trem são constantemente feitas em tempo real pela intensidade corrente de seus sinais GSM.

Áudio 2. (10’): “Der Bahnhofsgeist”, Tomada 2. Sinais GSM são capturados em tempo real pelo transdutor, amplificados e devolvidos ao ambiente.

A estação de trem (Bahnhof, em alemão), é, especialmente na Alemanha, de importância central para a vida cotidiana. Pode-se também entender a estação como um território intermediário, de trânsito e fluxo constantes ligando vários pontos—cidades—sem, ao mesmo tempo, pertencer a nenhum deles. Como observou LaBelle (2010, p. 9), ela é um paradoxo social. “A estação reúne permitindo jornadas separadas; estrutura desejos individuais, mas mesmo ao fazê-lo permanece estranhamente impessoal”. Estações de trem estão cheias de poética urbana, pois dão boas-vindas, cumprimentam pela primeira vez, se despedem e fisicamente separam relacionamentos, mas também deixam para trás um rastro de saudade, alegria e tristeza, tudo ao mesmo tempo, vagando por seus corredores e plataformas. Especialmente hoje em dia, no contexto da comunicação móvel acima mencionado, a estação de trem é incessantemente povoada por fantasmas, ligando cidades não só fisicamente, mas também no éter.

Seguindo essa premissa, a Estação Central de Bremen, na Alemanha, foi o local escolhido para o projeto de uma performance para explorar a psicogeografia hertziana. Usando um circuito eletrônico simples que detecta e amplifica os sinais de celulares GSM, portanto, agindo como transdutor e mediador entre o não-ouvido e a experiência de ouvir, arquiteturas relacionais invisíveis e território acústico, a performance apresenta ao morador da cidade essas camadas camufladas da vida urbana na tentativa de transformá-las, bem como suas propriedades físicas, em peças musicais. O artista, então, assume o papel de mediador, que tece a psicogeografia hertziana desse local específico, criando uma zona temporária de dérive para aqueles que se deixam levar pelo ritmo oculto.

Figura 1: Bremen Hauptbahnhof (Estação Central de Bremen). Foto do autor.

Figura 2: Circuito sniffer GSM.

O circuito mostrado na figura 26 é bastante simples: a primeira parte (A) é um detector de amplitude que utiliza um receptor de rádio de cristal (díodo de germânio AA118), uma bobina e uma antena. Para que a antena detecte corretamente o sinal de GSM, que deve ter o mesmo tamanho do comprimento de onda desejado, ou seja, 33 cm para 950 MHz7, tem-se a segunda parte (B), um amplificador de áudio simples construído usando um LM386, que é alimentado por uma bateria de 9 volts e aumenta o sinal original em até cerca de duzentas vezes. Essas emissões são encaminhadas tanto para um fone de ouvido quanto para uma placa microcontroladora Arduino8. Essas emissões permitem tanto a gravação das frequências na forma de áudio quanto sua utilização como dados digitais para outras possibilidades de processamento.

A peça é composta por duas experiências ou microperformances: a primeira utiliza os sinais GSM capturados para manipular um campo de captura de movimentos da estação em tempo real usando Puredata8. Uma amostra de cinco segundos é gravada e constantemente atualizada, e seu comprimento e pontos de partida são determinados pela recepção do sinal GSM por meio da placa Arduino (a decisão sobre a mudança de comprimento ou do ponto de partida é tomada aleatoriamente), e a emissão é combinada à captura não-processada em tempo real. Ao fazer isso, essa experiência tenta confundir essas duas camadas da vida cotidiana urbana: uma percebida pelos sentidos diretos e a outra invisível e também criar uma gagueira misteriosa constante da primeira.

Figura 03: Protótipo montado de Sniffer GSM (foto do autor).

Para a segunda tentativa, a ideia é capturar os sinais GSM separadamente e devolvê-los ao ambiente, não-processados (embora já levemente distorcidos pelo amplificador) ou manipulados em tempo real mudando-se o foco do aparelho. O objetivo dessa microperformance é revelar as possibilidades estéticas desses sinais na forma de música, numa atitude que se assemelha àquela do músico ambulante (comumente encontrado em estações de trem) como um chamado à apreciação da paisagem sonora infinita e não-ouvida criada pela mobilidade urbana por meio da comunicação sem fio.

Em ambos os casos, a sonorização e amplificação de tais dados servem aos propósitos performáticos e estéticos, pois a intenção de tal trabalho é chamar a atenção para as poéticas ocultas nesse espaço transitório à medida que se revela aos transeuntes desatentos a quantidade de dados de frequência como pacotes de informações que são gerados em períodos de tempo tão curtos.

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6Baseada em http://interface.khm.de/index.php/lab/experiments/radio-signal-strength-sensor/. Acesso em: 26 mar. 2013.

7A fórmula de cálculo utilizada para atingir esse comprimento é L = c/f, em que L é o comprimento de onda desejado, em metros, c é a constante de velocidade de uma onda de rádio em metros por segundo (a velocidade da luz, ou seja, 300 milhões) e f é a frequência GSM em hertz (950.000).

8Disponível em:http://www.arduino.cc. Acesso em: 26 mar. 2013.

9Disponível em:http://www.puredata.info. Acesso em: 26 mar. 2013.

Considerações finais

Os limites desencorpados, estendidos de objetos eletrônicos, como computadores e telefones celulares, ocupam um enorme espaço invisível constantemente absorvido e refletido pelo corpo. É pouco provável que o morador mediano da cidade reconheça esses espaços invisíveis. Os dados produzidos atravessam, criptografados, e supostamente protegidos, todo o espaço aéreo urbano. No entanto, tais fluxos de dados podem ser facilmente detectados, capturados, amplificados e ainda descodificados, desde que haja a intenção de fazê-lo. A invisibilidade, para explorar possibilidades estéticas como “novas e inusitadas maneiras de se entusiasmar e se envolver” (Buechley 2010, p. 86), consiste em expor e talvez incitar a reflexão, ponderação e discussão sobre isso? Quem pode ter acesso aos dados que produzimos? Onde fica a linha demarcatória entre o uso justo e difusão, apropriação e vigilância?

Estas experiências têm por objetivo ampliar o espectro para o desenvolvimento de novas possibilidades para o tratamento do espaço hertziano como potencialmente musical, como potencialmente performático. Artistas e urbanistas têm questionado a invisibilidade dos ritmos da cidade e sua organização em uma escala mais ampla, chamando a atenção para o próprio ambiente em que vivem. Ao combinar e embaralhar esses dois princípios, esta experiência tentou posicionar-se dentro da paisagem sonora invisível, resultante de uma crescente geografia hertziana, e sua relevância para a compreensão do nosso próprio micropapel no organismo vivo—a cidade e seus territórios—por meio de eventos e da música.

Assim, pode-se perguntar que tipo de valor musical pode ser extraído e subvertido desse território acústico não-ouvido em contínua expansão e que tipo de mensagem essas zonas temporárias passam. Como afirma LaBelle (2010, p. 207), “essa topografia etérea pode ser apreciada como um lócus sonoro primário, pois age como uma materialidade ambígua e maleável ao mesmo tempo em que lhe são sobrepostos inumeráveis significados; é a fonte primária do tornar-se sonoro ao mesmo tempo em que consiste na própria vitalidade do corpo [...]". Que tipo de geografia poderia ser essa, e de que forma poderíamos começar a imaginar esse entrelaçamento de eventos aéreos?

Referências

BUECHLEY, L. Questioning Invisibility. Computer, vol. 43 (4), pp. 84-86, 2010.

DUNNE, A.; RABY, F. Design Noir - The Secret Life of Electronic Objects. Basel; Boston; Berlin: Birkhäuser, 2001.

COVERLEY, M. Psychogeography. Harpenden: Pocket Essentials, 2006.

JOHNSON, S. Emergence - The connected lives of ants, brains, cities and software. Nova York: Scribner, 2002.

LABELLE, B. Acoustic Territories - Sound Culture and Everyday Life. Nova York: Continuum, 2010.

SADLER, S. The Situationist City. Cambridge: MIT Press, 1998.