NOMADS NA METRÓPOLE

Introdução

Estudos populacionais de diversas naturezas, inscritos em diferentes campos disciplinares, com fins variados e em países distintos, tem convergido, ao longo das últimas décadas, para uma conclusão comum: o grupo doméstico conhecido como Família Nuclear, formado por pai, mãe e filhos, absolutamente dominante em quaisquer pesquisas demográficas nas principais metrópoles ocidentalizadas durante a maior parte do século XX, vem gradativamente cedendo lugar a outros formatos familiares em expansão. No Brasil, sua participação no total dos grupos que era, na década de 1940, de mais de 80%, vai sistematicamente reduzir-se até representar, em 1996, apenas 55,8% do conjunto, segundo dados do IBGE Instigante, no entanto, é saber que os outros 44,2% identificados em 1996 não correspondem a um perfil único, mas a uma crescente diversidade de formatos: pessoas vivendo sós em diferentes momentos da vida, famílias monoparentais, casais sem filhos, coabitantes sem vínculo conjugal ou de parentesco, casais não oficialmente casados, etc. A esta variedade de perfis vêm associar-se padrões de comportamento que até a pouco tempo inexistiam ou não eram bem aceitos socialmente: o culto ao próprio corpo, traduzindo-se seja pela sua modelação estética e conseqüente exposição, seja por cuidados às vezes excessivos com a saúde, seja pela reivindicação de momentos de relaxamento após jornadas estressantes; a volta do trabalho remunerado ao interior doméstico, estimulado pelas constantemente renovadas possibilidades de comunicação à distância; o aumento do tempo passado em casa, resultado de diversos fatores, que acabaram respaldando interesses mercadológicos que tem superequipado o espaço da habitação com mobiliários e equipamentos nem sempre necessários.

Leituras e análises destas e de outras alterações comportamentais e demográficas vem sendo realizadas pelo Nomads.usp Núcleo de Estudos sobre Habitação e Modos de Vida, da Universidade de São Paulo, com o intuito de compará-las ao mapeamento dos espaços domésticos oferecidos à população pelo mercado e por arquitetos, pretendendo-se verificar sua adequação e propor critérios de intervenção. De acordo com tais estudos, a evolução recente da moradia brasileira metropolitana em geral, e a paulistana em particular, apresentam duas recorrências principais: por um lado, a articulação de seus espaços continua a reproduzir o modelo burguês parisiense do século XIX, concebido no bojo da remodelação haussmanniana, visando os hábitos mundanos da burguesia ascendente da época e exportado para todo o mundo civilizado de então, que se calca na tripartição da unidade em zonas Social, Íntima e de Serviços. A outra recorrência é a progressiva exigüidade de seus espaços, devida a fatores diversos como o aumento do preço do solo urbano, a diminuição de pessoal doméstico, o que, no entanto, não altera sua compartimentação funcional: a moradia convencional brasileira divide-se, em geral, em cômodos cada vez menores, que ainda obedecem uma ordem datada de há quase cento e cinqüenta anos.

Parte integrante e essencial destes interiores, o mobiliário e os equipamentos não parecem ter uma história muito distinta. Desde que os moveleiros renascentistas timidamente passaram a sugerir critérios funcionais para o seu desenho — só definitivamente aceitos pela burguesia da Belle Epoque —, até hoje, cinco séculos se passaram nos quais a população ocidentalizada acostumou-se a comer em mesas, a sentar-se em cadeiras, a dormir em camas, e os equipamentos de higiene, impulsionados por invenções inglesas do final do século XIX, passaram a compor, juntamente com os destinados à preparação de alimentos, a parte fixa da habitação, ligada a redes públicas externas de abastecimento e escoamento. A olho nu, o que se vê na cena brasileira do design de interiores da última década do século XX são estas mesmas peças redesenhadas, abrigando com algum improviso as novas funções propostas pelos novos comportamentos dos usuários: atualizada com traços da moda, é a velha e boa escrivaninha que recebe o computador, enquanto sofás e poltronas se vêem adornados com rodízios que não giram, dada a exigüidade dos espaços que irão mobiliar. Tudo indica que a razão central deste, digamos, descompasso, esteja em um equívoco inicial de projeto: limitando-se a rejuvenescer o design de sofás e cozinhas, nossos designers não teriam ainda percebido a enorme mudança de costumes em curso, não vendo, portanto, motivos para reestudar certas atividades desenvolvidas no espaço doméstico, como “relaxar”, “trabalhar”, “isolar-se”, “receber”, etc. Retrato enganoso, esse? Talvez.

Projeto NOMADS NA METRÓPOLE: projeto realizado através de convite da revista arquitetura e construção na sua comemoração de 15 anos.


O terreno foi setorizado em três áreas sucessivas. A frontal é uma representação do artificial, constituída por um gigantesco paliteiro que contrapõe-se a área posterior, de preservação. A casa situa-se exatamente entre estas duas zonas, propondo uma ligação protegida entre o natural e o artificial. Interface com os mundos concreto e virtual, o ambiente doméstico constitui-se como um sistema que recebe inputs de diversas naturezas dos habitantes.
O edifício resume-se em um bloco que abriga em seu interior dispositivos organizadores de diferentes possibilidades espaciais: quatro plataformas móveis verticalmente que interligam-se através de outras quatro passarelas conectivas fixas situadas em diferentes níveis. Estas rasgam o volume do bloco e avançam sobre a paisagem externa, formando dois eixos: natural-artificial (árvores e paliteiro) e fogo-água (lareira e ofurô).
O projeto desenvolve-se em torno de três eixos principais:

Eixo Ambiental

A casa utiliza-se de três materiais principais: a Madeira de reflorestamento, o Alumínio reciclado e a Resina plástica. Todas as vedações externas da casa podem, se assim se desejar, serem abertas, transformando o edifício em uma grande estrutura generosamente vazada, confundindo interior-exterior. Preocupações ambientais também norteiam a concepção dos sistemas hidráulico e de coleta de lixo. Toda a água usada é filtrada em uma pequena central no térreo e reutilizada para diversas atividades, assim como parte do lixo orgânico destina-se à manutenção da mata, nos altos do terreno. Tanto a coleta seletiva de lixo quanto a filtragem da água e o caminho percorrido pela evacuação de esgotos revelam-se no piso inclinado inferior, como uma lembrança da condição humana dos moradores, de sua dimensão corpórea.

Eixo Funcional

Cada plataforma móvel tem seu piso coberto por um tapete multimídia, que é uma superfície macia composta por camadas de espuma de densidade variável, que pode ser organizada em diferentes posições, para diferentes usos (deitar-se, dormir, trabalhar, estudar, comer, ler, fazer amor, descansar, etc.) através de comandos automatizados. O tapete possui ainda caixas acústicas embutidas e diferentes possibilidades de iluminação. As plataformas móveis podem garantir privacidade aos moradores, através de um sistema de vedação rápida.
Passarelas Conectivas possibilitam espaços de encontro e de cirulação, interconectando as plataformas móveis, mas também possibilitando diversas atividades. Não são espaços utilitários, e não abrigam funções básicas da habitação. São espaços de ligação, de encontro, de prazer, de união entre os moradores e, eventualmente, seus convidados. Fogo, água, natural e artificial são as características de cada uma das quatro passarelas, que se situam em quatro níveis diferentes dentro do grande volume da casa.
Estocagem de equipamentos são caixas de dimensões variáveis fixadas externamente nas fachadas laterais do edifício, onde se guardam os equipamentos móveis que dão suporte às atividades desenvolvidas.
Cabines de higiene (cuidados com o corpo e com a mente). O chuveiro se localiza no nível mais alto da habitação possibilitando ao morador/usuário uma visão privilegiada da cidade sem o auxílio de mídias: o homem despido, apenas corpo-espírito, num momento íntimo de relaxamento e revisão do seu dia. Esse princípio é enfatizado pela vedação em chapa curva de alumínio reciclado, que impede tanto a visão do interior da cabine a partir do restante da casa, como as ondas do sistema Bluetooth. Duas cabines conjugadas configuram a área de banho, em cujo amplo diâmetro poderiam banhar-se uma ou mais pessoas ao mesmo tempo.
Cabines sanitárias localizam-se na face externa das fachadas frontal e posterior, tem-se a possibilidade de contato com as mídias, tendo-se visão do exterior concreto e das imagens virtuais veiculadas a partir do envelope comunicante

Eixo Virtual

Vedação como interface: Toda a vedação é constituída por painéis-sanduíche produzidos com placas de resina PET reciclada + glicol (PET-G) e com uma matriz ativa de cristal líquido (Active Matrix Liquid Crystal Displays — AMLCDs). Os painéis funcionam como gigantescos monitores, possibilitando a visualização de imagens em toda a vedação do edifício, inclusive a cobertura, visível a partir do interior e do exterior. É possível, por exemplo, assistir-se a um DVD na parede da cabine sanitária, checar e-mail enquanto se descansa, preparar alimentos com ajuda de um chef via internet etc. Torna-se possível ainda a mescla de realidades concreta e virtual. Por exemplo, uma cena típica de um céu estrelado numa noite qualquer de uma metrópole, pode transformar-se numa chuva de meteoros e arco-íris ou ainda hibridar-se com clips da MTV e mensagens via internet. Esse envelope comunicante serve ainda para monitorar as entradas da casa, avisando sobre a chegada de convidados e transmitindo sua imagem, além de funcionar como interface de gestão de todo o sistema de automação da casa.
Este envelope comunicante altera também a iluminação (opaca, translúcida ou transparente) e também pode produzir padronagens virtuais funcionando como filtros (onde teria-se, por exemplo, imagens que filtrariam a luz, e estas poderiam ser diferentes representações, como brises de madeira, trepadeira e folhagens, até mesmo uma imensa e densa floresta, ou ainda imagens advindas do cyberspace) mesclando-se, portanto, as realidades concreta e virtual. A casa cave permite diferentes visualizações artísticas desse ciberespaço através de programações semelhantes às de media artists .
Para se fazer o diálogo entre moradores/usuários e a habitação, propõem-se alguns dispositivos de interface, facilmente adaptáveis em tamanho, cor e acabamento para melhor se adequar aos diferentes indivíduos, como, por exemplo, pulseira, brinco, implante de chip subcutâneo ou dental, e ainda a possibilidade de transmissão de dados via voz.
A casa apresenta ainda uma programação especial que grava num banco de dados protocolos comportamentais recorrentes dos moradores/usuários, detectando o nível de batimento cardíaco, altura da voz, temperatura corporal, etc. Assim, a casa daria como resposta a esses comportamentos novas qualidades espaciais (por exemplo, respondendo com música, imagens e transformações no ambiente).


[conceito]