O HÁBITO, A BOBAGEM E O DESPREZO DOS ARQUITETOS

Percebe-se o mesmo fenômeno com a mesa de sala de jantar que mede 72 cm de altura. Eu a considero uma altura inadaptada e é por esta razão que recomendo, já faz anos, dois tipos de mesa. A mesa Harry's Bar (63-65 centímetros de altura) permite sentar-se um pouco mais baixo e de uma maneira jogada, que não obriga a olhar a pessoa que se tem em frente. Depois, há a altura bar, com a mesa a 102 cm do piso. Significa que quando você está sentado, a pessoa que está de pé ao seu lado tem os olhos à altura dos seus. Assim, quando os pais passam duas horas à mesa enquanto os filhos vão e vem, todos os membros da família tem os olhos à mesma altura. Isto evita o corte devido ao ângulo de 45o entre a pessoa sentada e a que está de pé. Este ângulo cria um grande incômodo relacional para as duas pessoas, que toma a forma de uma queda de braço involuntária e inconsciente mas muito real. Esta mesa é uma das últimas maneiras de se reunir a família antes que ela exploda e que cada um se surpreenda comendo uma Cup Noodles no quarto, vendo TV!

Se os móveis de cozinha e de banheiro que eu projetei conheceram algum sucesso, foi porque eu me recusei a desenhá-los embutindo-os nas paredes. Eu prefiro móveis pousados no chão. Não acho normal que seja preciso possuir uma cozinha caríssima para ser bem considerado. No entanto, da mesma forma que elas sonham em ter um vison, um diamante ou uma bolsa Hermès, certas mulheres bobas querem uma cozinha que custa caro. Algumas burguesas ficariam bravas com os maridos se, na vida, eles não lhes presenteassem com uma bela cozinha. Basta ver o preço de uma cozinha toda equipada para perceber que é uma completa loucura. Pode-se ter uma outra visão da cozinha comprando móveis na Habitat, e aceitando ter uma cozinha mais desarrumada, mais "sala de estar". Com certeza, vai-se chegar a um resultado simpático sem ter que carregar um empréstimo nas costas durante quinze anos. Se se descola o móvel da parede, percebe-se que é possível colocar vários elementos no centro do cômodo e que se pode circular em volta. Esta organização favorece as trocas e permite, por exemplo, à pessoa que cozinha, estar em frente à pessoa que descasca os legumes.

O sOfá: um cômodo dentro do cômodo>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> > > > > > > >

A luz é também um elemento importante na cozinha. Com freqüência, coloca-se apenas uma fonte luminosa no centro do teto. É totalmente sinistro. Na cozinha desestruturada, podem-se multiplicar os pontos de luz e utilizar as luzes mais suaves e quentes. Iluminando assim a cozinha, estabelece-se uma ligação com a sala. A maneira como muitas pessoas iluminam me assusta, e eu considero que a iluminação é a chave absoluta do habitat.

A sala de visitas

e a sala de jantar

não existem

mais

A mobilidade é um equívoco. Há muitos móveis sobre rodinhas, mas eles não são nunca deslocados. De maneira geral, também não se utiliza a modularidade ou a polivalência dos móveis. As pessoas tem preguiça de manipulá-los. Compram móveis dobráveis por acharem o sistema esperto, mas muitos desdobram uma única vez e os abandonam. Mesma coisa com as cadeiras dobráveis. Eu tentei criar várias vezes móveis moduláveis que foram todos fracassos comerciais. Minha luminária halógena-porta-casacos, criada para a Trois Suisses, por exemplo, não vendeu. A mobilidade e a modularidade correspondem mais a um estado de espírito do que a uma realidade funcional.

A outra maneira de comer está ligada a um novo tipo de mobiliário que compreende sofás extremamente grandes, largos e profundos (2,5 metros por 1,8 metros de profundidade). Reconstituindo um espaço macio, reconstrói-se um cômodo dentro do cômodo. Este móvel, que pode servir para tudo, torna-se uma espécie de ilha polivalente situado no centro do vasto espaço de convívio na qual vão se passar as atividades quotidianas de todos os membros da família. Ligado a um web home theater, este sofá se defronta seja com uma tela de TV ou de web, seja com uma tela retrátil, permitindo que a dona da casa faça suas compras toda manhã, que tome aulas de ingles, que gerencie a domótica da casa, ou, ainda, de calcular seus pagamentos. Na hora do almoço, quando voltam da escola, as crianças assistem a um seriado na TV, e à tarde o sofá transforma-se no home office do pai que trabalha em casa com um teclado sem fio. No fim do dia, as crianças voltam e toda a família assiste ao noticiário. Em seguida, a dona da casa chega com pequenas tigelinhas japonesas, como uns Tupperware estéticos que podem ir ao micro-ondas e podem ser guardados na geladeira. Todo mundo come, e depois encomenda-se um grande filme ao qual assistem todos juntos.

A principal razão do meu sucesso no campo do mobiliário e da decoração vem de uma idéia simples: a sala de visitas, a sala de jantar e todos os seus móveis não existem mais. Da sala de visitas não há nada a dizer. O sofá a substituiu. A sala de visitas origina-se em tradições obsoletas que vêm de longe, de relações sociais que datam do século XIX e que estão, hoje, totalmente ultrapassados. Eu sou totalmente incapaz - e me pedem com freqüência para fazê-lo - de desenhar um sofá. Eu acho que a função deste móvel está ultrapassada. Coloque, por exemplo, dois sofás frente a frente e verá que, de maneira geral, as pessoas não se lançarão sobre eles porque elas não querem sentir-se obrigadas a começar uma conversa.

As obras de arquitetos evoluem, hoje, entre o hábito, a bobagem e o desprezo. O hábito, porque muitas pessoas não pensam na organização do cômodo quando constróem ou compram um imóvel, e os arquitetos e incorporadores fazem, portanto, o que sempre se fez. A bobagem, porque certos arquitetos imaginam que passarão por imbecís se se recusarem a prever uma sala de visitas e uma sala de jantar na casa dos clientes. Finalmente o desprezo, porque arquitetos e incorporadores imaginam ser suportável que, ao fim de um dia de trabalho, uma mulher seja obrigada a ficar preparando a refeição na cozinha, fazendo idas e vindas à sala, onde o resto da família assiste TV. Faz vinte anos que eu brigo para instalar a cozinha na sala de estar, abandonando a mesa convencional. Estas duas ações, que os idiotas e os cegos poderiam qualificar de estéticas, são, na verdade, eminentemente políticas.

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...artigos...
obsoleta

Na cozinha, as pessoas querem transparência. Para remediar a assombração dos fundos dos armários, criam-se móveis com portas transparentes e prateleiras abertas. Transformar a cozinha em uma espécie de quitanda-barzinho é uma idéia que me agrada muito. Ela se opõe à cozinha-laboratório glacial, que grassa há vinte anos, totalmente asseptizada, à qual falta calor, alegria, bagunça, sujeirinhas, e odores.

MESA HARRY'S BAR ...
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Exatamente como a cozinha vai se mesclaR cada vez mais com a sala, estou convencido de que o quarto vai se mesclar cada vez mais com o banheiro. O banheiro não é mais apenas associado à higiene mas também ao prazer. Com o mobiliário de banheiros que eu criei, pode-se compor verdadeiras "salas de águas". Até aqui, os banheiros eram mais clínicas, mas com esta nova geração de mobiliário poderemos mobiliá-los como uma sala de estar. É neste sentido que eles deveriam ganhar pouco a pouco o quarto.

c a d e i r a
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Há trinta anos, eu criei a poltrona leve, uma cadeira com braços. Quando eu a propunha aos fabricantes, eles a recusavam em prol das cadeiras convencionais que eu acho obsoletas, porque não se pode continuar a sentar nas cadeiras da cozinha quando o sofá da sala está se tornando cada vez mais acolhedor. Vamos, então, sentarmo-nos à mesa em pequenas poltronas não mais largas do que uma cadeira, mas muito mais confortáveis. Quando se recebe toda uma turma de amigos, passa-se, em geral, duas ou tres horas à mesa. O ideal é que a fonte de cozimento situe-se perto da mesa, para que a pessoa que cozinha não precise ficar se levantando, e possa conversar e beber um copo com seus convidados. A tribo familiar vai instalar-se na mesa alta. Certas pessoas - mais elegantes, ou solteiras - vão preferir o sistema Harry's Bar. Hoje, o caso do casal casado há trinta anos jantando em tête-à-tête é intolerável. A mesa obriga os cônjuges a se defrontar, e eles não tem mais nada a se dizer. A televisão é, então, a única escapatória que permite evitar de se olhar. Por que continuar a comer em uma mesa que coloca as pessoas faca a face?

A casa é feita de dois elementos primordiais: o travesseiro e o fogo. Para mim, o fogo é, antes de tudo, a cozinha, e me parece anormal que se equipe este cômodo apenas com fogões, porque a cozinha é o altar e o fogo que unem os membros da família. Toda casa se constrói e se irradia a partir do fogo da cozinha, ou seja, a partir do lugar onde se cozinha e se corta. Eu chego até a reimplantar cozinhas no lobby de hotéis para que as pessoas tenham a impressão de estar em casa, e possam se encontrar em torno da mesa.

E Q U Í V O C O S

mobilidade e modularidade:

... OU MESA BAR
a luZ

entrevista com o designer Philippe StarcK

In: Bellanger, F. Habitat(s): questions et hypothèses sur l'évolution de l'habitat. Paris: l'Aube, 2000. p. 129-138.

O BANHEIRO OU A SALA DE ÁGUAS
A COZINHA: NÚCLEO DA CASA
O LaBORAtório contRa a quitANDA-BARzinho OS MÓVEIS DE banheiro E DE cozinha [links]
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