habitação como interface
o edifício como sistema de comunicação

habitation as an interface
the building as a communication system

Um conjunto de arquitetos, em vários países do mundo, tem procurado explorar conceitos advindos do campo da Virtualidade em seus trabalhos e reflexões. O resultado tem sido pouco coeso, do ponto de vista conceitual, como, de resto, é correto esperar de uma produção espalhada pelo mundo, viesada com freqüência por fatores culturais locais. Nessa pouca coesão reside, porém, sua maior riqueza. Um rápido olhar sobre a prática de muitos desses profissionais permite entrever processos projetuais absolutamente distintos, frutos de histórias profissionais às vezes densas e longas, às vezes recém-iniciadas com sucesso. Quando o programa escolhido é o dos espaços de habitar, exames mais minuciosos têm mostrado que grande parte dessa produção contém inovações formais, sem, no entanto, propor-se repensar as funções dos espaços domésticos.

De fato, tanto no Brasil como em vários países ocidentais, as tecnologias de informação e comunicação – TIC – têm alterado modos de vida e engendrado tendências comportamentais, mas a configuração espacial dos interiores domésticos continua baseada na tripartição social-íntimo-serviços e na compartimentação por cômodos, permanecendo fiel a modelos europeus do século XIX. As formas de diálogo mediatizado, estimuladas pela contínua oferta de novos equipamentos pelo mercado, possibilitando outras maneiras de comunicar-se à distância, estão contribuindo para o surgimento de padrões de sociabilidade até então desconhecidos, reformulando demandas sobre o desenho desses interiores domésticos.

Alguns arquitetos, atualmente, têm em comum uma grande familiaridade com os novos meios digitais, mesclando, em suas propostas, elementos advindos do universos virtual e do mundo concreto, explorando linguagens visuais, arquitetônicas e artísticas inovadoras, construindo de forma empírica a noção de espaços híbridos. Para esses arquitetos, o computador não é apenas uma ferramenta de representação do projeto, mas um meio onde a concepção arquitetônica associa-se ao chamado pensamento digital, conforme definido por Pierre Lévy (1999) e Manuel Castells (2003), entre outros. As chamadas novas tecnologias passam a ser usadas em diversas etapas do projeto, desde a conceituação até a visualização 3D, no uso de maquetes eletrônicas e vídeos, e na própria execução do projeto, que muitas vezes requer máquinas de natureza robótica para, por exemplo, a produção de peças e transporte. De seus projetos, emerge uma habitação que utiliza as TIC, seja em seu funcionamento, em sua concepção ou em sua relação com espaços virtuais, dialogando com desenvoltura com áreas diversas, resultando em uma produção transdisciplinar de objetos, mobiliário, moda, instalações e manifestos, e mesmo música, vídeos e sites na internet.

Diversos profissionais, desse restrito grupo de arquitetos, chegam a propor diálogos artísticos inovadores, que se relacionam com novos paradigmas da cultura digital. Dentre os arquitetos, destacaremos Greg Lynn, Kas Oosterhuis, Didier Fiuza Faustino, Stephen Perrella, Lars Spuybroek, Peter Zellner, Neil Denari,  mas também os escritórios Diller & Scofidio, Softroom, Asymptote, Future Systens, Kolatan/Mac Donald Studio, IaN+, FOA, dECOï, Electronic Shadows, Ma0/emmeazero, entre outros.

Alguns deles iniciam o processo de criação diretamente no ambiente digital, enquanto outros preferem um processo híbrido, que utiliza simultaneamente virtual e concreto, fazendo uso de programas de modelação, máquinas de prototipagem rápida, desenhos em papel, maquetes, vídeos, etc.. Fica, no entanto, claro que, para a maioria desses arquitetos, o uso do computador extrapola os limites da representação: as TIC possibilitam a formulação de seu pensamento arquitetônico e o desenvolvimento de seu raciocínio projetual, o que constitui, certamente, seu grande diferencial.

Analisado o currículo dos arquitetos, nota-se que, em sua grande maioria, participam ativamente da área acadêmica. Quase todos fazem parte do corpo docente de universidades, produzindo registros escritos sobre os resultados de seu trabalho, participando de palestras e workshops em universidades de diferentes países e em diferentes níveis, desenvolvendo pesquisas. Essa maioria exibe também títulos acadêmicos em nível de pós-graduação, obtidos, em vários casos, em departamentos outros que os de arquitetura e urbanismo, como os de filosofia, engenharias, física, artes plásticas, história e ciências da computação. Essa postura interdisciplinar reflete-se claramente não apenas em vários dos projetos concebidos por estes arquitetos, como em seus processos de concepção. Seus currículos também revelam trata-se de profissionais com passagens e estadia em diferentes lugares do mundo, o que enfatiza sua abertura para diferentes culturas e seu interesse que busca, de certa forma, recosntruir a noção de lugar geográfico e, se quisermos, de territórios nacionais.

casa-interface, interatividade, hibridismos

Com a introdução dos micro-computadores pessoais no ambiente doméstico, em meados da década de 1980, iniciava-se uma enorme transformação no processo de geração e transmissão de mensagens: acostumado a ser receptor, o usuário tornava-se emissor de mensagens, ao utilizar-se das possibilidades de interação oferecidas pelas máquinas. Durante os últimos anos, um novo usuário dos espaços arquitetônicos vem surgindo, aprendendo a falar com telas, a expor-se a sensores e câmeras digitais. Auxiliado por equipamentos informatizados cada vez mais completos,  um número cada vez maior de pessoas parece assumir funções de produção, edição e transmissão de mensagens, antes reservadas a terceiros, passíveis de serem difundidas a partir de um simples blog/flog, ou compondo produtos complexos, eventualmente comercializáveis.

Derrick de Kerckhove nota, a esse propósito, que “tendo perdido o controle sobre a tela durante a era da televisão, estamos começando a recuperar o controle com o computador. (...) O computador traz uma total recuperação do controle sobre a tela de modo que agora, quando usamos um computador, compartilhamos a responsabilidade de produzir significado. Produzindo significado junto com a máquina e com as pessoas.” (Kerckhove, 2003).

Alguns conceptores de espaço propõem um início de interatividade do usuário com a própria habitação, que procura ultrapassar o viés funcionalista da chamada automação residencial. Verifica-se que, em diversos projetos, equipamentos como tela de televisão e monitor de computador são suprimidos dando lugar a grandes superfícies exibidoras de imagens, possibilitando dessa forma que os próprios painéis de vedação transformem-se em interfaces de acesso ao ciberespaço. Nesses casos, os arquitetos se apropriam de materiais novos, como o AMLCD (Active Matrix Liquid Crystal Display) – atualmente em desenvolvimento pela NASA –, que consiste em uma tela de cristal líquido capaz de reorganizar-se gerando imagens no seu interior, ao mesmo tempo em que pode simplesmente constituir um painel com diferentes graus de transparência e cor. Mais do que uma tela gigante, esse dispositivo pode assumir a função de divisor de espaços, interno e externo, permitindo, ainda, que se assista, por exemplo, a um filme, ou que se leiam mensagens de e-mail, ou mesmo que se simulem diferentes texturas e padronagens.

Os projetos que incorporam o AMLCD fazem parte de um grupo de experimentações que explora o conceito da casa como interface, ela própria uma mediação em si, e não mais um espaço mobiliado com equipamentos e, muitas vezes, gadgets. Passa-se, assim, a enxergar a habitação como um espaço em constante comunicação com o mundo. Se a comunicação conhece transformações tão profundas graças ao advento da internet, o espaço doméstico, na era digital, abriga também novos comportamentos, estando entre eles, certamente, uma necessidade renovada de diálogo com o exterior.

Nesse sentido, vale ainda notar outros dois conceitos atuais bastante importantes, que se fazem presentes em alguns projetos. Trata-se do discurso sobre computação ubíqua (ubiquitous computing)e computação emotiva (emotive computing). Referem-se, como se sabe, à maneira cada vez mais imperceptível e discreta como as novas tecnologias de informação e comunicação tem estado presentes na vida cotidiana de uma parcela cada vez maior da população. Deve-se isso, sobretudo, à miniaturização dos dispositivos e equipamentos, graças também ao desenvolvimento das nanotecnologias, mas também à tendência de hibridização entre tais equipamentos e ao design de interfaces que buscam ser mais amigáveis e facilitadoras da interação. Na instância doméstica, o mouse, o teclado, os interruptores e controles remotos tendem a dar lugar a comandos via voz e ao reconhecimento de movimentos, como o eye tracking, e o face recognition, por exemplo.

Alguns arquitetos refletem sobre a possibilidade de uma habitação capaz de reagir a certos estímulos, vindos tanto dos moradores quanto do meio-ambiente. Em suas proposições, a casa responderia espacialmente a tais estímulos, eventualmente transformando fisicamente seus ambientes, numa espécie de aperfeiçoamento e reinvenção da idéia moderna de flexibilização de espaços. Os inputs no sistema seriam dados pelos ocupantes, através de leituras realizadas por sensores de temperatura, da altura e da entonação da voz e dos movimentos dos moradores, entre outras formas. Muitos desses arquitetos servem-se de princípios de interatividade advindos da arte mídia, que já há alguns anos vem trabalhando com essas possibilidades de estímulos a respostas entre o objeto de arte e o espectador..

Em certos projetos de habitação, propostos por esse seleto grupo de conceptores, a interatividade é explorada em diferentes níveis, visando prioritariamente a criação de ambientes em que o homem seja mais do que observador. O desejo inato de tocar, transformar, sentir, adaptar a porção de mundo à sua volta assume outra dimensão e trilha outros caminhos quando mediada pelas TIC. Esse protagoniza o que se costuma chamar de cultura digital, que, diferentemente da cultura de massas, em que a mensagem é produzida por poucos e recebida por muitos, num caminho de sentido único entre emissor e receptor, abriga um caminho de ida e volta entre emissão e recepção.

É desse contexto, portanto, que vários arquitetos têm tirado proveito para experimentar e inovar, e, em certos casos, permitido que o morador torne-se também, em alguns níveis possíveis, co-autor do projeto. Os termos flexibilidade e interação encontram assim, um uso ainda mais expressivo, na concepção de casas onde não apenas se deslocam paredes ou peças de mobiliário, mas compreendem uma participação ativa do morador na sua configuração inicial e quotidiana. O usuário deste espaço possivelmente se acostumará a customizar os ambientes e a intervir em toda a organização espacial, participando de um processo de design participativo reinventado graças à mediação tecnológica, intervindo em instâncias até então exclusivas dos arquitetos, seja no processo de concepção espacial, graças
às modelações digitais, seja no uso e escolha dos materiais, ou até na previsão de custos de execução, possibilitados por novos programas.

referências bibliográficas

CASTELLS, M. 2003. A Galáxia da Internet: Reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. p.13.

KERCKHOVE, D. 2003. A arquitetura da inteligência: interfaces do corpo, da mente e do mundo. In Arte e vida no século XXI (org. Diana Domingues). São Paulo: Editora Unesp.

LÉVY, P. 1999. Cibercultura. São Paulo: 34.

autoria

Prof. Assoc. Dr. Marcelo Tramontano.
tramont@sc.usp.br

Arq. Guto Requena.
guto@gutorequena.com.br


VEJA AQUI TODOS OS PROJETOS!

.

clique aqui para ver todos os projetos!
índice.index | editorial | electronic shadow | automação.automation | timeline | midia art | arquiteturas.architectures | créditos.credits