do nada ao nada, (como) através de uma cebola!
from nothing to nothing, (as) through an onion!

azael rangel camargo

Como citar esse documento . How to quote this document:
CAMARGO, A. R. Do nada ao nada. V!RUS, São Carlos, n.2, 2 sem. 2009. Disponível em <http://www.nomads.usp.br/virus/v2/html/artigos_convidados/camargo.php>. Acessado em
03/05/2024.

Melhora!... mas, ainda não está claro, não é?

Primeiro os Nada:

Sobre um dos Nada.

Quando envolvida em um processo de criação, nossa mente imagina algo formal e significante, enquanto abstração. Algo, portanto, sem materialidade, apenas uma imagem que, no seu desenvolvimento futuro, poderá se tornar, no mundo real, um objeto e/ou um conceito. Assim como de um Nada biológico e mental emergem imagens e conceitos que se projetam em idéias e que se objetivam em objetos e discursos.

Sobre o outro Nada.

No vazio do espaço eletrônico, contido entre as faces dos zilhões de transistores que compõem os chips de um computador, aparecem e desaparecem elétrons, manifesta-se uma flutuação entre o nada e o pleno.

A cada volta infinitesimal do relógio (clock) uma nova oscilação ocorre. Ao longo de um micro-instante, emerge e se fixa um padrão composto de números ZERO (nada) e UM (pleno). Zero (0) e Um (1). Ao longo do tempo, tais padrões oscilatórios vão definindo uma cadeia de números binários que representam estruturas abstratas, produzidas e manipuladas por algoritmos, que podem ter como correlatos, no mundo real, palavras e frases, mas também podem formar imagens, sons, movimentos.

Assim, de um Nada eletrônico numérico também podem emergir imagens e frases.

Isto posto, pensemos na Cebola!... Isto é, na interface mediadora.

Observamos que entre os dois Nadas, o bio_mental (do meu cérebro) e o eletro-eletrônico (do computador), podem emergir (ser criadas) estruturas correlatas que, se colocadas em paralelo, podem reunir o poder imaginativo do homem, o poder de cálculo, e a conseqüente manipulação simbólica dessa máquina (motor) universal que é o computador.

Mas falta algo que permita esta intermediação. Mas o quê?


Aqui entra a metáfora da Cebola...

Terry Winograd, em seu fundamental livro "Computer and Cognition", mostra que uma inteface é composta por uma série de camadas que ligam o Computador ao Homem. A interface é composta de várias camadas que se justapõem... como as camadas de uma Cebola. A Cebola_Interface leva do nada ao nada! Com que prazer, ou... com que desprazer, mas ninguém é indiferente a ela.

Assim, temos a camada eletro-eletrônica, a camada numérica, a camada lógica, a camada lingüística, a camada das práticas sociais, a camada das práticas cognitivas.

Esta Cebola, nossa interface, é portanto um espaço cognitivo, pois nele se pensa simbolicamente; é um espaço comunicativo, pois nele se estabelecem relações sociais. Mas ele também deve permitir uma interatividade manipulatória de todos os símbolos envolvidos em cada uma das camadas. Evidentemente, cada operação em cada camada irá exigir uma competência específica.

E aí,... Como é possível que todos possam desfrutar dos poderes cognitivos e comunicativos que esta possui?

Ah...ha.

Essa cebola é, também, uma grande máquina tradutora... Não importa em que camada eu esteja, a minha competência específica permitirá que eu possa desfrutar de todas as competências disponíveis. Assim foi com o Físico, com o Matemático, com o Lógico, com o Analista de Sistemas, com o Sociólogo, com o Designer, com o Artista.

Mas, e o Homem comum, não-especialista?

Aqui também está a grande potencialidade das interfaces, pois elas também podem ter uma camada comum para os "homens sem qualidade", enfim todos nós outros, que simplesmente conseguimos ter algumas competências específicas, mas que, no mais dos campos, sempre seremos amadores. Entre as especialidades científicas e as formas de expressão artísticas, com certeza encontraremos os nossos limites criativos.

Mas, interfaces de acesso universal e ao alcance do homem comum, "sem qualidade", permitem em tese, ou permitirão efetivamente em um futuro não longínquo que possamos ser criativos em todas as áreas (!). Novos polígrafos, verdadeiros Leonardos,... Eidetekers.

Porém, como encontrar as idéias ou metáforas que permitam o design e a construção dessas interfaces universais, para além do modelo estabelecido e consolidado no "teclado alfanumérico-tela-alto-falante", que usa a metáfora do plano de trabalho?

A editoria da Revista V!rus sugere uma procura na literatura infantil.

A hipótese de fundo é que os contadores de histórias, os autores, para alcançar o imaginário da criança, fazem seus personagens interagir com objetos e seres fantásticos, animais que se relacionam como pessoas, e objetos que interagem como autômatos conscientes.

Dois apelos emergem de imediato, pois, para tal procedimento, a linguagem acessível da criança é limitada:

....• pela dificuldade de leitura, daí a fala dos seres, animais e objetos,

....• a imaginação é potencializada pela afetividade, daí o caráter antropomórfico dos personagens.

Disso tiraríamos algumas lições:

....• A interface universal deveria ser mais audiovisual e menos letrada ou "literada";

....• Todo objeto manipulável dessa interface deveria possuir características antropomórficas que permitissem imediata empatia;

....• Indo mais longe, seriam tais seres e objetos a própria interface interativa.

Lembremo-nos de algumas histórias de nossa infância:

....• “Alice no país das maravilhas”, onde ela interage com seus parceiros de aventura, o coelho e o seu relógio, o ovo hoopyt dôo, a casa que cresce e encolhe, o gato listrado, a lagarta que fuma sobre um cogumelo, e as cartas do baralho que se metamorfoseiam em reis, rainhas e exércitos;

....• “Alice no outro lado do espelho”, onde, através de algum artifício, Alice consegue penetrar no mundo especular, simétrico ao nosso;

....• “Branca de Neve e os sete anõezinhos”, onde aparecem como objetos (personagens?) centrais o espelho, a maçã;

....• “Aladim e a Lâmpada Maravilhosa”, onde Aladim interage com uma lâmpada;

....• “Ali Babá e os Quarenta Ladrões”, em que Ali Babá comanda a entrada da caverna com a voz ('Abre-te, Sésamo!');

....• “A Bela e a Fera”, com Bela e os castiçais, bules, xícaras e móveis que vivem na casa da Fera;

....• “A Menina na casa do Mágico das 11 horas”, onde os objetos realizam os serviços domésticos no lugar desta;

....• “A Casa do Mágico”, onde todos objetos são falantes e têm a capacidade de se moverem, de realizar as suas funções de forma autônoma e, ainda, de diminuir e voar para dentro da valise do Mágico quando este viaja, o qual sempre tem seus instrumentos do cotidiano com ele.

Mais recentemente, como uma espécie de síntese contemporânea:

....• “As aventuras de Harry Potter”, onde encontramos uma variedade imensa de objetos e espaços animados, seres fantásticos. Em especial: a Varinha Mágica, que libera todos os seus poderes ao comando de voz de seu proprietário; a Lareira que permite deslocamentos inter-espaços; o Comando_fala “aparatar”, que permite o deslocamento no espaço, além da “Bacia de visão”, onde os “fluidos” retirados da mente permitem ver o passado vivido.

Podemos a partir dessas histórias retirar alguma lição para o design das interfaces que previlegie as possibilidades de uma linguagem interativa universal para “os homens sem qualidades”.

Numa rápida desconstrução do imaginário dessas histórias, além dos já apontados (recurso à imagem e à afetividade):

Assim, era uma vez....

....• os personagens estão em situação de perigo e precisam do auxilio ou acesso a forças externas e sobre-humanas, e os objetos ou seres são capazes de prover ou viabilizar este acesso;

....• Para liberar o acesso a um poder maior, é necessário um encantamento ou desencantamento, o que é feito com recurso a uma senha ou um passe, que pode ser uma palavra mágica, uma canção, uma lembrança;

....• Esta Força, ou é dada diretamente pela aquisição de um poder de que o personagem não dispõe no cotidiano, ou é provida, ou mediada, por um ser fantástico, um gênio, um animal ou um objeto;

....• A partir desse instante, o personagem fica de posse do poder e pode utilizá-lo, manipulá-lo, ao seu livre arbítrio;

....• Pode ocorrer uma variante, ou complemento, quando o uso do poder faz com que o personagem deva empenhar ou pagar algo, alem de uma eterna (!) gratidão;

....• Quando a situação se resolve, tais poderes somem, desaparecem ou ficam à sua disposição para um novo episódio.

E viveram felizes por muitos e muitos anos...

Dessa de_construção obtemos características importantes para o Design das Interfaces Universais para os “homens sem qualidade” - HsQ. As interfaces colocam nas mãos dos “ HsQ” um poder não disponível no cotidiano:

....• Esse Poder é o do acesso à Memória coletiva da produção humana nas Bibliotecas e/ou dos Bancos de Dados, livros, gráficas, discos, etc.;

....• Esse poder é o da Cognição, ajudando a pensar com algoritmos embutidos nos diferentes softs;

....• Esse Poder é o da Expressão e Representação, que através das diferentes linguagens artísticas, me permite fazer um produto ou obra multimídia ou hipermídia, ou simplesmente escrever um poema, fazer um som, criar um desenho ou pintura;

....• Esse Poder é o da Comunicação e Interação à distância, seja no envio, seja na recepção de estímulos;

.• Esse Poder é o poder de participação nas práticas cotidianas, sociais, políticas econômicas;

....• Esse Poder é o poder da inclusão e participação social livre e democrática.

É claro, esse poder é, em última instância, não esqueçamos, o poder resultante da ligação direta dos dois Nadas, o Nada biológico mental e o Nada eletro-eletrônico.

A Mente e suas práticas são suportadas pelas TIC, Tecnologias da Informação e Comunicação, que criam a ilusão de um espaço concreto, do ciberespaço ou a interface virtual, onde os veículos ou instrumentos daqueles poderes, objetos simbólicos, são criados, manipulados e apagados pelos homens_mentes usuários .

A interface é, portanto, o lugar mágico onde os HsQ se encontram, mediados pelos seus instrumentos mágicos e, assim, podem liberar os gênios que os auxiliam a viver no mundo real como Homens de Qualidade.

 

 

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Azael Rangel Camargo é engenheiro civil, doutor em Aménagement du Territoire, professor associado aposentado da Universidade de São Paulo, e coordena pesquisas sobre redes telemáticas e urbanismo virtual.

Azael Rangel Camargo is a civil engineer, doctor in Aménagement du Territoire and Associated Professor at the University of San Paolo. He directs research about telematic networks and virtual urbanism.

In this article, Azael Camargo explains how from two Nothings, the biologic one and the electronic one, can emerge a correlated structure that, if placed side by side, can bring together the imaginative power of the Man and the power of calculation, and consequence symbolic manipulation of the universal machine that is the computer. By introducing the onion as a metaphor for the interface between computer and User, he highlights its potentiality of translation. Therefore, it does not matter in which layer we find the specific ability, which will allow to enjoy all the abilities that are available. Thus, interfaces of universal access allow or will allow us effectively in a not distant future to become creative in all the fields as new polygraphs or true Leonardo da Vinci´s.

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...?
Então...
Do nada virtual do cyberspace, ao nada da mente imaginante,
através de um objeto como interface mediadora.

issn 2175-974x | sem 2-2009