espelhinho,
meu espelhinho
little mirror, little mirror on the wall
ruy sardinha lopes
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SARDINHA, R. L. Espelhinho, espelhinho meu. V!RUS, São Carlos, n.2, 2 sem. 2009. Disponível em <http://www.nomads.usp.br/virus/v2/html/artigos_convidados/sardinha.php>. Acessado em
04/05/2025.
Desde
há muito tempo, o universo da literatura infantil apresenta-nos um
vasto repertório de “objetos encantados”, aquilo que, numa
linguagem contemporânea, poderíamos chamar de objetos dotados
de interfaces tangíveis: varas de condão, vassouras voadoras,
barrete vermelho, lâmpadas, espadas e botas dotadas de “poderes
especiais”, portas e espelhos que atendem ao comando de voz, etc..
Se a extensão e permanência destes exemplos poderiam levar a
crer que o desejo por tais tecnologias subjaz a qualquer funcionalidade alcançável
- qual dona de casa não sonhou, na década de 1960, em ter na
sua família uma Rosie Jetson (a robô-empregada)? -, a inquirição
deste universo pode nos ajudar a desvendar outras camadas deste desejo.
Muito já se escreveu sobre o significado psicológico e psicanalítico
dos contos de fadas e da literatura infantil de modo que não é
nosso objetivo esmiuçar o significado simbólico, por exemplo,
de uma espada mágica (símbolo do órgão viril),
capaz de salvar uma jovem indefesa.
Neste breve comentário – na verdade, uma sugestão para
reflexões mais detidas – gostaríamos de chamar a atenção
para uma característica do universo infantil que explica a naturalidade
com que tais objetos surgem e se colocam diante dos personagens e leitores
infantís (nesse caso, é nossa, dos adultos, a atribuição
de excepcionalidade a tais objetos).
Como nos mostra Bruno Bettelheim, baseado nos estudos de Piaget, até
a puberdade domina, na criança, o pensamento animista. Assim, não
existindo uma linha clara que separe os objetos das coisas vivas, é
bastante natural que estes falem, dêem conselho, ajudem os personagens
em suas façanhas ou que os homens possam se transformar em objetos
ou vice-versa (como em A Bela e a Fera). Incapazes de grandes abstrações,
os objetos encantados fornecem o substrato material necessário à
simbolização das dúvidas
e anseios que povoam o universo infantil.
Sabemos, entretanto, que a passagem da infância para a fase adulta se
dá justamente através do arrefecimento do pensamento animista
em prol das explicações mais abstratas (aquilo que chamamos
de pensamento científico ou raciocínio lógico). Cônscio
de si, de suas limitações e potencialidades, poderá finalmente
promover o questionamento das imagens míticas tão essenciais
em momentos pretéritos.
Entretanto, tanto individualmente quanto em termos de estruturas sociais,
há momentos onde o vínculo com o pensamento mágico se
mostra necessário para compensar a aspereza da vida ou a imaturidade
da formação psíquica. Um bom exemplo disso pode ser obtido
no conto Branca de Neve.
A
par das questões edipianas e narcísicas bastante evidentes,
chama a atenção que, se Branca de Neve se mostra bastante imatura
em sua passagem para a vida adulta – desobedecendo constantemente os
conselhos dos anões (adultos-crianças) e, com isso, pondo sua
própria existência em perigo –, tal imaturidade marca igualmente
o universo adulto. A necessidade que a madrasta-rainha tem de se reportar
constantemente ao espelho mágico (um objeto programado para dizer somente
a verdade) reitera obsessivamente seu comportamento infantil. Não podendo
sublimar, a madrasta-rainha encontra-se aferrada ao princípio de prazer
que a satisfação narcísica do reconhecimento de sua beleza
ímpar lhe proporcionava. Assim, se a menina Branca de Neve encontra
sua redenção (sua “morte” temporária representa
a transição para a nova realidade) através de um novo
encastelamento (a vida matrimonial), a madrasta-rainha, ao não poder
dar ouvidos ao princípio-realidade revelado pelo tão estimado
objeto encantado, paga, como Narciso, com a própria vida a conta de
sua incapacidade psíquica.
É
sabido que o modo de existência dos nossos objetos tecnológicos
– neste caso, dos objetos computacionais com interfaces tangíveis
– aproxima-os muito mais do universo objetivo e lógico das ciências,
requisitando também do interator ações e procedimentos
afeitos ao pensamento abstrato.
A maravilha com a qual aqui se lida não é, certamente, a da
ordem do sobrenatural e sim das capacidades inerentes ao processo de desmistificação
do mundo. Mas também é preciso não esquecer que este
é apenas um dos lados deste cristal multifacetado que é o ser
humano, e que o pensamento animista pode, muitas vezes, melhor responder às
demandas internas, ainda mais numa sociedade que insiste a nos reduzir a homo
consumens.
Mas, assim sendo, uma importante diferença marca a transição
dos espelhos mágicos de nossa época daquele narrado pelo conto
de Branca de Neve. Se lá ele revelava à madrasta-criança
a impossibilidade da satisfação de seus desejos, os atuais oferecem-nos
a construção imaginária (hiperbolizada por tais constructos
tecnológicos) de um eu que tudo pode, da satisfação
plena de todos os desejos. Não mais através das simbolizações,
mas da posse desses objetos (o que leva ao surgimento de uma nova categoria
– os tecno-excluídos ou deprimidos digitais).
Assim, diante do espelho digital, ao inquirí-lo sobre seu narcisismo contemporâneo, a top model ouviria: “Real senhora, sois aqui a mais bela. Porém Branca de Neve é que de vós ainda mais bela!”, e, diante da infelicidade de seu prossumidor, o espelho acrescentaria: “Não vos preocupeis, clicai aqui e vos fornecerei a lista atualizada de todas as tecnologias de embelezamento disponíveis no mercado”.
E
assim, vive feliz nossa madrasta-modelo, pelo menos até que seu dinheiro
acabe.
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Ruy Sardinha Lopes é filósofo, doutor em filosofia e professor doutor da Universidade de São Paulo, e tem, entre seus interesses de pesquisa, a relação entre mídias digitais e os padrões de consumo atuais.
Ruy Sardinha is a philosopher, doctor in Philosophy and Professor Doctor at the University of Sao Paulo. The relationship between digital media and present day consumption standards is among his research interests.