espelhinho, meu espelhinho
little mirror, little mirror on the wall

ruy sardinha lopes

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SARDINHA, R. L. Espelhinho, espelhinho meu. V!RUS, São Carlos, n.2, 2 sem. 2009. Disponível em <http://www.nomads.usp.br/virus/v2/html/artigos_convidados/sardinha.php>. Acessado em
19/03/2024.

Desde há muito tempo, o universo da literatura infantil apresenta-nos um vasto repertório de “objetos encantados”, aquilo que, numa linguagem contemporânea, poderíamos chamar de objetos dotados de interfaces tangíveis: varas de condão, vassouras voadoras, barrete vermelho, lâmpadas, espadas e botas dotadas de “poderes especiais”, portas e espelhos que atendem ao comando de voz, etc.. Se a extensão e permanência destes exemplos poderiam levar a crer que o desejo por tais tecnologias subjaz a qualquer funcionalidade alcançável - qual dona de casa não sonhou, na década de 1960, em ter na sua família uma Rosie Jetson (a robô-empregada)? -, a inquirição deste universo pode nos ajudar a desvendar outras camadas deste desejo.

Muito já se escreveu sobre o significado psicológico e psicanalítico dos contos de fadas e da literatura infantil de modo que não é nosso objetivo esmiuçar o significado simbólico, por exemplo, de uma espada mágica (símbolo do órgão viril), capaz de salvar uma jovem indefesa.

Neste breve comentário – na verdade, uma sugestão para reflexões mais detidas – gostaríamos de chamar a atenção para uma característica do universo infantil que explica a naturalidade com que tais objetos surgem e se colocam diante dos personagens e leitores infantís (nesse caso, é nossa, dos adultos, a atribuição de excepcionalidade a tais objetos).

Como nos mostra Bruno Bettelheim, baseado nos estudos de Piaget, até a puberdade domina, na criança, o pensamento animista. Assim, não existindo uma linha clara que separe os objetos das coisas vivas, é bastante natural que estes falem, dêem conselho, ajudem os personagens em suas façanhas ou que os homens possam se transformar em objetos ou vice-versa (como em A Bela e a Fera). Incapazes de grandes abstrações, os objetos encantados fornecem o substrato material necessário à simbolização das dúvidas e anseios que povoam o universo infantil.

Sabemos, entretanto, que a passagem da infância para a fase adulta se dá justamente através do arrefecimento do pensamento animista em prol das explicações mais abstratas (aquilo que chamamos de pensamento científico ou raciocínio lógico). Cônscio de si, de suas limitações e potencialidades, poderá finalmente promover o questionamento das imagens míticas tão essenciais em momentos pretéritos.

Entretanto, tanto individualmente quanto em termos de estruturas sociais, há momentos onde o vínculo com o pensamento mágico se mostra necessário para compensar a aspereza da vida ou a imaturidade da formação psíquica. Um bom exemplo disso pode ser obtido no conto Branca de Neve.

A par das questões edipianas e narcísicas bastante evidentes, chama a atenção que, se Branca de Neve se mostra bastante imatura em sua passagem para a vida adulta – desobedecendo constantemente os conselhos dos anões (adultos-crianças) e, com isso, pondo sua própria existência em perigo –, tal imaturidade marca igualmente o universo adulto. A necessidade que a madrasta-rainha tem de se reportar constantemente ao espelho mágico (um objeto programado para dizer somente a verdade) reitera obsessivamente seu comportamento infantil. Não podendo sublimar, a madrasta-rainha encontra-se aferrada ao princípio de prazer que a satisfação narcísica do reconhecimento de sua beleza ímpar lhe proporcionava. Assim, se a menina Branca de Neve encontra sua redenção (sua “morte” temporária representa a transição para a nova realidade) através de um novo encastelamento (a vida matrimonial), a madrasta-rainha, ao não poder dar ouvidos ao princípio-realidade revelado pelo tão estimado objeto encantado, paga, como Narciso, com a própria vida a conta de sua incapacidade psíquica.

É sabido que o modo de existência dos nossos objetos tecnológicos – neste caso, dos objetos computacionais com interfaces tangíveis – aproxima-os muito mais do universo objetivo e lógico das ciências, requisitando também do interator ações e procedimentos afeitos ao pensamento abstrato. A maravilha com a qual aqui se lida não é, certamente, a da ordem do sobrenatural e sim das capacidades inerentes ao processo de desmistificação do mundo. Mas também é preciso não esquecer que este é apenas um dos lados deste cristal multifacetado que é o ser humano, e que o pensamento animista pode, muitas vezes, melhor responder às demandas internas, ainda mais numa sociedade que insiste a nos reduzir a homo consumens.

Mas, assim sendo, uma importante diferença marca a transição dos espelhos mágicos de nossa época daquele narrado pelo conto de Branca de Neve. Se lá ele revelava à madrasta-criança a impossibilidade da satisfação de seus desejos, os atuais oferecem-nos a construção imaginária (hiperbolizada por tais constructos tecnológicos) de um eu que tudo pode, da satisfação plena de todos os desejos. Não mais através das simbolizações, mas da posse desses objetos (o que leva ao surgimento de uma nova categoria – os tecno-excluídos ou deprimidos digitais).

Assim, diante do espelho digital, ao inquirí-lo sobre seu narcisismo contemporâneo, a top model ouviria: “Real senhora, sois aqui a mais bela. Porém Branca de Neve é que de vós ainda mais bela!”, e, diante da infelicidade de seu prossumidor, o espelho acrescentaria: “Não vos preocupeis, clicai aqui e vos fornecerei a lista atualizada de todas as tecnologias de embelezamento disponíveis no mercado”.

E assim, vive feliz nossa madrasta-modelo, pelo menos até que seu dinheiro acabe.

 

 


 

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Ruy Sardinha Lopes é filósofo, doutor em filosofia e professor doutor da Universidade de São Paulo, e tem, entre seus interesses de pesquisa, a relação entre mídias digitais e os padrões de consumo atuais.

Ruy Sardinha is a philosopher, doctor in Philosophy and Professor Doctor at the University of Sao Paulo. The relationship between digital media and present day consumption standards is among his research interests.

In this article, Ruy Sardinha discusses how magical objects are presented in fairy tales. By supplying the necessary material substratum for the symbolization of doubts and yearnings that populate the childhood universe, they are at present time translated as computational objects accessible through tangible interfaces. By understanding this universe that inhabits the human imaginary, it can help us to unmask the desire for possessing such technologies. This bond with the magical thinking can appear as compensation to the harshness of life or the immaturity of the psychic formation, providing, many times, a better answer to internal demands. But, thus, an important difference marks the transition of the magical mirrors of our time. Differently of those present in the fairy tales, the current ones offer us no more imaginary construction of a self which is able of doing everything through symbolization, but through the ownership of these objects.
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“Há maior significado profundo nos contos de fadas
que me contaram na infância do que na verdade que a vida ensina.”

Schiller

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