as
chaves de alice
alice's keys
fábio duarte*
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DUARTE, F. As chaves de Alice. V!RUS, São Carlos, n.2, 2 sem. 2009
Disponível em <http://www.nomads.usp.br/virus/v2/html/artigos_convidados/duarte.php>.
Acessado em
04/05/2025.
"Ai, ai! ai, ai! Vou chegar atrasado demais!", diz o Coelho, puxando
um relógio de bolso do colete. E Alice não se espanta. Curiosa,
corre atrás do coelho - aonde iria, com tanta pressa? As aventuras
de Alice no País das Maravilhas abrem-se com o tempo, o tempo mediado
por um objeto técnico. O
relógio do coelho é a síntese, em um objeto técnico,
de um arranjo social, econômico, político, que reduzem as variações
dos ciclos naturais de um dia. Dias longos de verão, noites longas
de inverno, o Ártico de noites mensais ligado aos dias e noites constantes
no Equador, por 86.400 segundos que, passados, anulam-se para a recontagem.
O relógio do coelho evidencia que vivemos em um tempo das maravilhas,
um tempo fantasioso.
E
o coelho está atrasado. Se ele está aqui, mas deveria estar
lá, ele ocupa duas posições no espaço ao mesmo
tempo. Está aqui sem o querer, e querendo, não está lá
- onde é aguardado.
O coelho sintetiza Aion e Cronos, na discussão proposta por Gilles Deleuze. Para Cronos, "só o presente existe no tempo", um presente que se estende bidirecionalmente englobando passado e futuro - que são apenas partes da extensão de um presente com vastidões que se alteram, sem que haja alteração na essência para o passado ou futuro. Já para Aion, "somente o passado e o futuro insistem ou subsistem no tempo", o presente sendo apenas uma ilusão essencialmente subdividida em passados e futuros que, no entanto, nunca se tocam.
Mas Alice é curiosa. Persegue o coelho e cai em um poço. Mas
"ou o poço era muito fundo, ou ela caía muito devagar".
Espaço e tempo interdependentes. Enquanto cai, Alice olha para baixo,
para os lados, vê estantes de onde pega objetos para depois devolvê-los
em outras estantes. O tempo de Alice é o tempo da fruição,
velocidade (distância dividida pelo tempo) relativa ao aproveitamento
do tempo e do espaço. O
tempo de Alice é o da reflexão - e da dúvida; e do que
primeiro duvida é do objeto tecnológico, o relógio: está
caindo lentamente ou o poço é profundo? Se lentamente, ou se
profundo, o parâmetro da dúvida é o relógio. Ao
usufruir da queda, o tempo conceitual embutido no relógio é
posto de lado.
Os objetos tecnológicos, por serem construções sociais
(científicas, econômicas, políticas, técnicas),
guiam comportamentos - mas devem ser questionados para que outras fruições
sejam possíveis.
Do Jaguadarte
E dizia o Rei Branco que precisava trocar de lápis, pois não
tinha o menor controle sobre o que possuía. E no livro sobre a mesa,
um poema escrito em uma língua que Alice não conhecia; até
que teve uma idéia luminosa: era um livro do espelho, um livro que
apenas se deixava ler quando refletido. E se lia:
...."Era briluz
....as lesmolisas touvas roldavam e relviam nos
gramilvos
....Estavam minsicais as pintalouvas
....e os momirratos davam grilvos" (na tradução
de Augusto de Campos)
Ou se lia?
...."Solumbrava, e os lucriciosos touvos
....Em vertigiros persondavam as verdentes
....Trisciturnos calavam-se os gaiolouvos
....E os porverdidos estriguilavam fientes (na
tradução de Maria Luiza Borges)
A
linguagem é o fundamento da tecnologia. Linguagem não é
balbucio, não é esboço. É a seleção
consensuada de signos (entre uma miríade possível), organizados
a partir de regras, para dizer de objetos, de idéias, de sentimentos,
sem sua necessária presença. O objeto tecnológico estrutura-se
na linguagem.
O objeto técnico é ferramenta. Um objeto que cumpre sua função na dependência absoluta de alguém que detenha a técnica, o saber manusear. O objeto tecnológico é artefato, é o conjunto de saberes científicos e tecnológicos sintetizados em um objeto que ganha relevância em determinado contexto social, cultural e econômico. O objeto tecnológico, o artefato, embute conhecimentos que dialogam entre si independentemente de um manuseador. O arteto funciona. O diálogo entre os conhecimentos tecnológicos embutido nos artefatos é possível pela sua codificação: tanto a codificação de cada subconjunto de conhecimentos e procedimentos tecnológicos específicos, quanto - e principalmente - a tradução entre os conhecimentos de cada subconjunto. O objeto tecnológico funda-se no domínio de linguagens.
A linguagem é o conjunto articulado de signos; signos que apresentam
algo em sua ausência. Atribuir signos implica em reduzir a riqueza do
objeto, do fenômeno. Neste sentido: há um fenômeno desconhecido,
buscam-se signos, articulam-se signos conhecidos, criam-se signos para descrevê-lo.
Noutro sentido: a articulação de signos conhecidos, a criação
de signos, despertam um novo fenômeno.
Nos
objetos interativos há um diálogo com os usuários que
alteram o automatismo da linguagem codificada propícia para que o objeto
tecnológico funcione. A interação desperta combinações
entre subconjuntos de linguagem internalizados nos objetos tecnológicos,
que, se não altera o objeto, cria a riqueza do fenômeno.
O Jaguadarte existe e diz seu poema para descrever-se a Alice.
Não há nada que não um poema que, ao dizer-se, cria Jaguadarte e sua relação com Alice.
O Jaguadarte escancara sua essência submissa à linguagem. O Jaguadarte desperta e domina as combinações que criam linguagem.
O objeto interativo é o Jaguardate, que (se) cria quando há
interação. A interação faz de um objeto um ser
interativo.
* O autor agradece Polise De Marchi pela colaboração. [voltar]
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Fábio Araujo Duarte é arquiteto, doutor em Arquitetura, professor doutor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, e autor de livros sobre relações entre tecnologias de informação e comunicação, arquitetura e urbanismo.
Fábio Araújo Duarte is an architect, doctor in Architecture and Professor Doctor at the Catholic University of Parana, Brazil. He is the author of books about the relationship between Information and Communication Technologies, and Architecture and Urbanism.