Como citar este texto: PETIZ, A. P. De(s) continuidades espaciais: projeto e narrativas. V!RUS, São Carlos, n. 6, dezembro 2011. Disponível em: . Acesso em: 00 m. 0000.

Ana Paula Petiz é Arquiteta. Professora Adjunta e Pesquisadora do Centro de Estudos de Arquitetura e Urbanismo (CEAU) da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto (FAUP).

Resumo

O projeto, desenvolvido ao abrigo do PER - Programa Especial de Realojamento, destinou-se a resolver situações de carência habitacional de algumas famílias residentes em “ilhas” - “ilhas do Porto” - acabando por determinar a mobilidade residencial, da cidade consolidada para os novos territórios do urbano. Num cenário de mudança, a que são afetas relações físicas e socioculturais, aproximamo-nos do tema do habitat envolvendo a dupla problemática 'territorialidade' e 'sociabilidade'. Nesse sentido, aproximamo-nos do processo de concepção através de algumas narrativas que se desenvolvem em torno do espaço aberto, particularmente da noção de espaço intermédio, num contexto de de(s)continuidades espaciais.


Palavras-chave:

território contemporâneo; vazios urbanos; espaço aberto; bairro; habitação coletiva; espaço intermédio; sociabilidade; vizinhança.

De(s)continuidades espaciais: projeto e narrativas


No Porto, desde o século XIX, as situações de carência habitacional envolveram maioritariamente as chamadas “ilhas”, conhecidas como “velho problema da cidade”, cuja construção se intensificou ao longo do século XX, estendendo-se aos concelhos limítrofes. Tratava-se então de projetar um conjunto de edifícios em habitação coletiva, destinando-se a realojar famílias provenientes de “ilhas” de Matosinhos.


Na 'ilha', onde se diluem as fronteiras entre o interior das células e o corredor exterior coletivo de acesso, os espaços intermédios alimentam a sociabilidade e as vivências em comunidade ganham protagonismo.

O processo de concessão obrigava assim a refletir sobre o espaço associando-o a esse sentido de comunidade que se estendeu a gerações sucessivas de moradores, ao longo de vários anos (FERNANDES, 2004, p. 17)1. Lembramos então que o tempo de atualização do habitus, conforme Pierre Bourdieu, se torna longo quando diz respeito a grupos sociais de baixos rendimentos. Pensar o projeto, face ao reconhecimento da comunidade a realojar, implicava pensar o habitar em coletivo, envolvendo agora a mobilidade das famílias, da cidade consolidada aos novos territórios do urbano, onde o espaço aberto vai persistindo como fator determinante de crescimento, muitas vezes marcado por um carácter de ambiguidade. Ambíguo, pela “indefinição, incerteza, dúvida / indecisão (do lat. Ambiguitas, -ãtis)” conforme Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea (ACADEMIA DE CIÊNCIAS DE LISBOA, 2001, vol. I, p. 209), já que os espaços abertos se foram modificando no seu sentido, com uma participação, nem sempre clara, na estrutura de desenvolvimento do espaço urbano. “Numa realidade multifacetada a arquitetura pode criar espaços mais plurais por, precisamente, serem indeterminados. A antiga noção de identidade torna-se então mais ambígua...”, segundo entrada do 'Diccionario Metapólis de la Arquitectura Avanzada' (GAUSA, et al., 2001, p. 43).

Na sua permanência, a noção de espaço aberto vai-se mantendo associada a uma noção de urbanidade, enquanto valor a defender. No tempo, a mesma questão vai subsistindo: como encarar hoje esse espaço aberto? Desfeitas as ingenuidades ou posturas demiúrgicas, haverá que aceitar os desafios lançados pelo território que temos, retirando daí as premissas para o projeto.


Perante a possibilidade de vir a 'reorganizar' uma parcela de território, lembramos Portas: é “sinal dos tempos tratar o tema do espaço que não se constrói” (PORTAS, 1986, s.p.). Num cenário de de(s)continuidades urbanas, o 'espaço aberto' torna-se referência, mediante a possibilidade de pensar uma nova ordem, envolvendo a participação dos espaços 'entre-dois'. Tomam-se aqui como referência os dispositivos espaciais e arquitetônicos que permitem a inter-relação espacial, e inter-relacionar é “estabelecer determinada relação ou ligação entre dois ou mais elementos, de tal modo que um afeta o outro” (ACADEMIA DE CIÊNCIAS DE LISBOA, 2001, vol. II, p. 2142).

Chega-se assim ao termo 'trânsito', que pode ser sinônimo de “ato de caminhar e mudar de sítio ou tornar-se fluxo” (DELGADO, 2004, p. 35). O desenho das estruturas urbanas está vinculado à deslocação, e a transformação do território contemporâneo encontra-se ligada às formas de mobilidade, associadas às novas práticas espaciais do habitar - (do lat. Habitãre): “viver em determinado lugar, ou região, ser habitante; Habitat (do lat. Habitat, 3ªpessoa Do sg. Do pres. Do indc. De habitãre): Conjunto das condições relacionadas com o lugar onde se vive ou mora, ou com a habitação» de acordo com fonte anterior” (ACADEMIA DE CIÊNCIAS DE LISBOA, 2001).

O espaço aberto participa num sistema em que o canal é “princípio de dinâmica urbana, que se materializa numa relação entre partes de cidade” (RATOUIS; MARRIÈRE; DIEUDONNÉ, 1997, p. 143). Fala-se de espaço urbano, de movimento e de fluxos, incluindo aqui o peão e a respectiva relação com a 'rua', onde “os mundos se sobrepõem e se confundem, permitindo saltar de universo em universo” (GARCIAS; TRETELL, J-J.; TREUTELL, J., 1997, p. 97). Trata-se de espaços e de usos, e da duplicidade de comportamentos - pausa e mobilidade - que tem motivado a reflexão sobre o espaço e como pode, ou não, influenciar os comportamentos de quem habita, “desde a ancoragem espacial às derivas do flanêur” (CLAVEL, 2002, p. 78). Nesse sentido, como alimentar o sistema de relações que se desenvolvem entre o espaço aberto e o construído, materializado num conjunto de edifícios de habitação coletiva?

Considera-se então a unidade de quarteirão, de acordo com a possibilidade de favorecer uma identidade coletiva e a intensidade de vivências de uma comunidade, inscrevendo-se em dois momentos, “a comunidade local, unidade sociológica fortemente estruturada, e o conjunto de comunidades, simples lugar do 'habitat' do outro” (CLAVEL, 2002, p. 74). Está em causa a possibilidade de constituir um tecido em que célula e envolvente, mais próxima ou mais lata, poderão integrar de forma articulada um sistema de conexões. Lembramos como Portas refere o “protagonismo do 'bloco” (PORTAS, 1986, s.p.) na nova composição urbana - o plano de massas e o isolado - ou ainda o verde, referindo o jardim público, o logradouro privado e a respectiva separação, que passou a ser fundamentalmente equacionado em termos quantitativos. Neste contexto, e não obstante a necessidade de definir tipologias de habitação, acabamos por focar mais intensamente o tema do espaço aberto e, em particular, a noção de espaço intermédio.

Partindo deste conjunto de pressupostos, a cruzar com a resposta ao programa prévio de necessidades, está em causa definir relações entre o espaço da intimidade e mundo exterior, questionando-se as condições de inserção e sobre as possibilidades de regeneração urbana. A 'porta' é o dispositivo que permite aceder ao lugar da intimidade e, por princípio a fachada o plano em que se insere, definindo uma fronteira entre o interior e o exterior, o privado e o público. Mas esta dialética implica contiguidades e 'de(s)continuidades' espaciais - “a importância constitutiva e diacrítica das vizinhanças” (BELLI-RIZ, 1997, p. 51) - que poderão polarizar e induzir a práticas de mobilidade e/ou sociabilidade, implicando uma aproximação à ideia de limite - entre-dois e formas de articulação - e à sua materialidade. Em contexto de mediação e através de um sistema de interdependências. De acordo com Gausa:

Os lugares intermédios estão em todo o encontro, em toda a superfície limite, em todo o lugar geométrico das áreas em que se encontram dois meios diferentes, dois estados diferentes da matéria, dois lugares diferentes, pelo menos duas funções diferentes (GAUSA, 2001, p. 343).


Paralelamente ao conceito de fluidez, tem-se em conta a noção de eficácia,já que as problemáticas do 'espaço aberto' contemporâneo tendem a oscilar permanentemente entre os temas da hierarquia, da visibilidade e acessibilidade, num continuum que prevalece como fator de integração dos espaços. Aproximamo-nos assim de conceitos como estrutura, estatuto, grau de abertura, acessibilidade e apropriação, no sentido de fazer aproximações a volumetrias e respectivas relações, a superfícies, cérceas e distâncias entre tipos de edificado e no seio do próprio espaço aberto.

Por paradoxo, os espaços abertos, situados entre conjuntos de edifícios, foram-se afastando da noção de interior de quarteirão mas, paralelamente, na organização de conjunto “foi prevalecendo a tendência para ignorar relações com o que lhe é 'exterior” (PORTAS, 1986, s.p.). Numa vasta rede de transportes e fluxos, de que se distingue um novo sistema de relações entre os edifícios, “debilitou-se a fronteira de relacionamento entre espaço interior e espaço exterior” (ZANDINI, 2004, p. 205). O 'espaço aberto', passou a expressar uma nova filosofia de organização, com origem em espaços “da tradição urbana, tal como a rua, a praça, ou a habitação, na sua condição de arquétipos, e através dos quais a cidade persegue o equilíbrio entre o cheio e o vazio, o público e o privado” (LÉVY, 2000, p. 103).


Tratando-se de uma intervenção destinada a realojar famílias provenientes de 'ilhas', temos como referência o 'corredor de distribuição', espaço aberto coletivo de prolongamento do espaço doméstico que permitiu fomentar o sentido de comunidade. Com base numa leitura da morfologia básica da 'ilha', na relação com a observação de vivências no quotidiano, justificam-se algumas das opções de projeto, no que se refere a dispositivos espaciais e arquitetônicos de uso coletivo. Recorre-se ao conceito de unidade de 'quarteirão', designando um fragmento do espaço urbano que permite explorar a noção de 'identidade', e fundamentar opções formais associadas a comportamentos e práticas de grupo. A “definição do espaço social urbano passa efetivamente pelo território do quarteirão, espaços de vizinhança à escala da vida quotidiana e do peão” (CLAVEL, 2002, p. 16). Chega-se assim a uma definição de dispositivos espaciais e arquitetônicos, tendo presente que “todo o espaço implica uma contiguidade que implica o para lá de si mesmo, contiguidade que participa do seu próprio reconhecimento” (SECCHI, 1993, p. 5-9).



O projeto, num processo de concepção de formas físicas e dispositivos arquitetônicos e espaciais, vai encontrando fundamentos com base no conceito de híbrido. Assim, o sentido da passagem, na transição entre escalas, entre público e privado, e entre individual e coletivo, acaba por definir uma trama de ligações, abrangendo toda a área de intervenção.

A passagem física, num contexto de fluxos e continuidades, parece motivar o encontro, ainda que de caráter fortuito, tornando-se palco de sociabilidade.

Conjunto Habitacional do Monte Espinho, 1995-2004[1]

Lugar do Monte Espinho, Leça da Palmeira, Matosinhos - Portugal.

Projeto de arquitetura e coordenação: Ana Paula Petiz.

Colaboradores: Filipe Fontes, Joana Almendra, Filipe Silva, Márcio Rodrigues, Maria Ana Coutinho, Margarida Ramos, Pedro Gama, Hélder Ramos.

Programa: 234 habitações em edifícios de habitação coletiva e equipamentos de apoio.

1ª Fase de construção: 108 habitações em edifícios de habitação coletiva e equipamentos de apoio.

[1]Obra realizada ao abrigo do PER - Programa Especial de Realojamento. O PER aparece em 1993, ainda relacionado com as problemáticas do crescimento urbano e demográfico da década de 60, como primeira grande medida de políticas habitacionais tomada depois do SAAL e da Revolução do 25 de Abril de 1974.

Referências

ACADEMIA DE CIÊNCIAS DE LISBOA. Dicionário de língua portuguesa contemporânea. Lisboa: Verbo, 2001.

BELLI-RIZ, P. Le vert et le noir: l'automobile dans l'espace résidentiel moderne. In: PICON-LEFEBVRE, V. (Dir.). Les espaces publics modernes. Paris: Moniteur, 1997, p.51-74.

CLAVEL, M. Sociologie de l´urbain. Paris: Anthropos, 2002.

DELGADO, M. Trânsitos, espacio público, masas corpóreas. La calle y el cuerpo. In: SOLÀ-MORALES, I.; COSTA, X. (Eds.). Metrópolis. Barcelona: GG, 2004, p.34-50.

FERNANDES, M. As ilhas do Porto. In: PANMIXIA Associação Cultural. Ilhas. Porto: Panmixia, 2004, p.15-27.

GAUSA, M., et al. Diccionario Metápolis de la arquitectura avanzada. Barcelona: Actar, 2001.

LÉVY, J.-P. Pour une nouvelle lecture de la mobilité: entre espaces quotidiens et espaces résidentiels. In: CUILLIER, F. ; BERNARD, M.-C. (Dir.). Les débats sur la ville /3. Bordeaux: Confluences, 2000, p.102-106.

PORTAS, N. O espaço exterior urbano: de resíduo a ordenador. Porto: [s.n.], 1986.

SECCHI, B. Un´urbanistica di spazi aperti. CASABELLA, jan./fev. 1993, ano LVII, n.597-598, p.5-9.

RATOUIS, O.; MARRIÈRE, D.; DIEUDONNÉ, P. Les espaces publics, enjeux d´un devenir collectif: les exemples de Brest et Dunkerque. In: PICON-LEFEBVRE, V. (Dir.). Les espaces publics modernes. Paris: Moniteur, 1997, p.135-157.

TREUTELL, J-J.,GARCIAS, J-C., TREUTTEL, J. Remembrement/démembrement, la morphologie hybride des grands ensembles. In: PICON-LEFEBVRE, V. (Coord.). Les espaces publics modernes. Paris: Moniteur, 1997, p.93-114.

ZANDINI, M. De la “ciudad que sube” al paisage que avanza. In: SOLÀ-MORALES, I.; COSTA, X. (Eds.). Metrópolis. Barcelona: GG, 2004, p.205-212.