Memória, práticas sociais e identidade no contexto urbano

Maria Carolina Mazivieiro

Maria Carolina Mazivieiro é Arquiteta, Doutora em História da Arquitetura e Urbanismo, e professora da Universidade São Judas Tadeu. Estuda relações entre tecnologia e território, pesquisando a ampliação do entendimento sobre a cidade nas últimas décadas.


Como citar esse texto: Como citar este texto: MAZIVIEIRO, M. C. Memória, práticas sociais e identidade no contexto urbano. V!RUS, São Carlos, n. 16, 2018. [online] Disponível em: <http://www.nomads.usp.br/virus/virus16/?sec=4&item=5&lang=pt>. Acesso em: 07 Out. 2024.


Resumo

Este artigo aborda a construção da memória como um dos elementos fundamentais da condição humana. Falar de memória é falar do presente humano, pois ela é a responsável pela capacidade de se situar no tempo e de pertencer a um espaço e, assim, a memória associa-se às formulações de identidades, individuais ou coletivas. A memória se refere ao passado, mas é constantemente reformulada pelos indivíduos no presente de acordo com os subsídios de que dispõem. É, portanto, trabalho, na medida em que necessita dessa reconstrução constante do passado a partir dos referenciais do presente (BOSI, 1994). Assim, este artigo tem como objetivos centrais: I) entender como os suportes físicos se tornam referências fundamentais para as práticas sociais e para a afirmação de identidades, e II) discutir a preservação enquanto instrumento de poder, a partir da compreensão das condições de produção e permanência dos suportes físicos. Para tanto, buscou-se recuperar e analisar criticamente a literatura basilar sobre o tema da construção da memória relacionada aos tipos construídos. Como resultado, procurou-se corroborar para o reposicionamento dos valores de pertencimento e cidadania que envolve o próprio conceito de patrimônio, agregando ao estudo das permanências, a compreensão das lutas simbólicas que as envolvem.

Palavras-chave: Identidade urbana, Tipologia construída, Memória e poder


1 Memória e identidade

Viver na cidade significa estar em contato cotidiano com o diferente, mesmo que o outro esteja cristalizado em estruturas físicas inanimadas. Através da sua disposição no espaço, do modo como estão ordenadas ou da sua configuração, tais estruturas nos remetem a hábitos e costumes de alguns grupos aos quais podemos ou não estar vinculados. É dessa relação com a alteridade pelo contato direto ou mediado que afirmamos diariamente nossa individualidade.

Ainda que as imagens a respeito de práticas sociais sejam construídas individualmente e os referenciais sejam criados a partir de lembranças também individuais, necessitamos recorrer a pontos de referência fora de nós para evocá-las (HALBWACHS, 2006). Segundo o autor, a participação do grupo social e da memória coletiva na reconstrução de lembranças é imprescindível, o que faz da memória um fenômeno social.1

O indivíduo, no entanto, não deixa de ser determinante para o pensamento social. Cada pessoa tem um fluxo de impressões inteiramente pessoais dos fatos sociais, ou seja, cada memória individual tem um ponto de vista da memória coletiva e essa subjetividade é relacionada ao lugar social ocupado pelo indivíduo, que também varia em função das relações tecidas em outros meios.

Nessas relações, os objetos participam como uma espécie de sociedade silenciosa garantindo a formação de um quadro de referências que se adaptam às nossas percepções do presente e apoiam nossa permanência na cidade. Esses objetos, em si, contém apenas características materiais, os valores e os papéis que assumem nas relações sociais são atribuições humanas e não uma propriedade intrínseca às coisas. É certo que os traços materiais dos objetos, como a matéria prima de que são constituídos, as técnicas de sua produção, sua forma, usos e sinais que indiquem suas condições operacionais, formam um conjunto de dados que permitem conclusões acerca da organização socioeconômica dos indivíduos envolvidos na existência desses objetos. No entanto, o sentido das coisas deve ser buscado fora deles, mesmo que sua materialidade permita tais raciocínios (MENESES, 1998). E, se tal produção e consumo de sentido são processos mediados por humanos, logo são historicamente marcados.

Dessa forma, a memória, como atributo que situa os seres humanos no tempo conferindo-lhes a percepção de sua finitude, necessita dessas estruturas materiais que estão estreitamente ligadas à manutenção da nossa capacidade de lembrar para a formação e manutenção de identidades.

A identidade pode ser definida como aquilo que diferencia um indivíduo social dos outros, aquilo que garante peculiaridade às biografias e, ainda, uma compreensão global pelo indivíduo do lugar que ocupa na sociedade. Esse processo de afirmação de si acontece diariamente, no mesmo momento em que entramos em contato com o outro e confrontamos estruturas psíquicas, ideológicas ou estéticas à memória daquilo que afirmamos ser.

A perda da memória estaria, portanto, associada à perda da identidade. Este fenômeno aparece como uma das grandes ameaças do mundo moderno: o trabalho passa a ser constituído por atos mecânicos e repetitivos para os quais o aprendizado da vida perde o sentido. O surgimento da escrita e o fim da tradição oral, o imediatismo do presente, a individualização, entre outros fatores apontam para a perda da transmissão de valores e conhecimentos entre gerações (BOSI, 1994; SANTOS, 2003).

Dentro da perspectiva de que a memória seria constituída a partir de vínculos sociais, Hannah Arendt (1992) afirma que indivíduos modernos vivem uma “felicidade limitada” na medida em que perdem não só a memória como a capacidade de reflexão sobre essa perda. Uma vez que os próprios indivíduos são constituídos por desejos, anseios e comportamentos que não estão encerrados em si mesmos, mas em práticas coletivas, a apreensão de um estado de felicidade plena se torna inalcançável sem a referência da memória; “somente em raríssimas ocasiões a mente humana é capaz de reter algo inteiramente desconexo” (ARENDT, 1992, p. 31). Não obstante, a autora desconsidera o papel fundamental dos suportes físicos na reflexão sobre a memória, na medida em que atribui sua elaboração fundamentalmente às relações sociais entre humanos.

Essa vinculação fundamental entre memória e identidade, onde a memória aparece como elemento-chave para a condição humana é temática explorada na ficção, como nos filmes “O Caçador de Androides” (Blade Runner), “Amnésia” (Memento) e em tantos outros.

O primeiro2, dirigido por Ridley Scott, se passa no ano de 2019 e narra a luta de androides (criaturas geradas para servirem como soldados) para sobreviver além dos quatro anos programados de vida adulta. Os androides, chamados de “replicantes”, não tem memória, mas lutam para constituir a sua própria identidade. Nesse sentido, a história da replicante Rachel é significativa, pois sua identidade é construída a partir de implantes de fragmentos de memória humana (da sobrinha de Tyrell, criador dos replicantes) associados a objetos que remetessem a uma história familiar no passado, como fotografias espalhadas pela casa, por exemplo. As lembranças são usadas como provas para encobrir sua condição de androide, ou seja, para entender-se como humana é necessário que elabore no presente um passado, mesmo que falso. É por isso que Rachel se agarra tanto às provas de seu passado.

Em “Amnésia”3, o protagonista Leonard perde a capacidade de converter memória de curto prazo em memória de longo prazo depois de sofrer um ferimento na cabeça quando tentava salvar sua esposa de um ataque. Após esse evento, Leonard é incapaz de se lembrar de fatos, de pessoas que encontra ou de suas ações no presente, ou seja, suas experiências recentes não constituem uma memória duradoura e desaparecem. Apesar de suas lembranças de antes do acidente não terem sido apagadas, a identidade do personagem no presente não é estável porque uma parte de sua história não foi registrada. Leonard não sabe há quanto tempo o acidente aconteceu, não se reconhece no presente e torna-se joguete dos interesses de outros personagens da trama. Para encontrar o assassino de sua esposa, Leonard fotógrafa, faz anotações em papel e tatua no próprio corpo pistas que acha importante. A falta de arquivamento de lembranças de um período da história desarticula a compreensão do tempo, desestabiliza a identidade e incapacita a ação consciente no presente, além de impedir projeções de futuro.

Segundo Le Goff (2003), foi justamente o caráter instável da memória que levou o surrealismo a questioná-la como produto da imaginação, frágil e enganadora, merecendo atenção especial de André Breton no Manifeste du Surréalisme, de 1924. Halbwachs (2006) se aproxima desse questionamento ao afirmar que a lembrança é uma imagem construída através dos materiais disponíveis no presente e a partir de nossa percepção atual – que varia com o tempo. Ao passado lembrado no presente estão associados pontos de vista, o que torna a memória relativa ao lugar temporal e espacial ocupado pelo indivíduo, ou seja, o “trabalho”4 da memória é feito a partir de fragmentos de passado intercalados por fragmentos de presente.

Em decorrência desse processo de reelaboração do passado na contemporaneidade, no momento em que um objeto antigo (ou uma construção antiga) é deslocado da sua função original para integrar acervo de museus, decoração ou ao tornar-se monumento, podem lhe ser atribuídos valores diversos daquele de uso, na sua origem. As características para exercer a função original permanecem no objeto ou na construção antiga. No entanto, ao ser transformado em monumento, seu valor de uso passa a ser apenas cognitivo, isto é, a função original passa a ser acessada apenas através da memória e o espaço funciona como uma espécie de arrimo para a memória. Objetos ou construções têm a propriedade de evocar lembranças que, no presente, contribuem para a construção da identidade nos indivíduos.

2 Memória e Espaço: tipologia e identidade urbana

Desorientados em relação aos pontos cardeais, privados do plano que fornece um argumento ao seu saber, os indígenas perdem rapidamente o senso das tradições, como se seus sistemas social e religioso (veremos que são indissociáveis) fossem complicados demais para dispensar o esquema que o plano da aldeia tornava patente e cujos contornos os seus gestos cotidianos refrescavam perpetuamente (LÉVI-STRAUSS, 1957, p. 231).

Nesse trecho de Tristes Trópicos, podemos notar não só a influência do ambiente na afirmação da identidade, como também a necessidade constante do trabalho da memória em conjunto com o lugar para possibilitar tal afirmação. O conjunto de objetos que nos rodeiam, assim como o ambiente em que estão inseridos, funciona como elemento ativador desse processo no qual memória e identidade são reconstruídas e reafirmadas cotidianamente.

Há aqueles objetos que se destacam dos demais por representarem uma experiência vivida e, por isso, são guardados e incorporados à vida do possuidor como um ícone através do qual a memória acessa aquele fato marcante. Violette Morin (apud BOSI, 2004, p. 441) os denominou de objetos biográficos por guardarem as lembranças da vida do possuidor, por lhe serem caros ao ponto de envelhecerem ao lado dele, dando-lhe a sensação de continuidade.

Podemos transpor a relação entre objetos biográficos e seus possuidores ao patrimônio edificado. As construções nos contam uma parte importante das relações entre cidades e seus habitantes. A maneira de arranjá-las no espaço, os materiais e as técnicas empregadas na sua edificação ou mesmo os padrões estéticos utilizados para lhes dar forma e cor são elementos que corroboram para ativação da memória dos indivíduos que se relacionam naquele espaço.

Percebe-se que a adaptação humana a determinado lugar é favorecida pela permanência da paisagem e pela imobilidade das pessoas. Segundo Halbwachs (2006), essa apropriação do lugar acontece quando os pensamentos e os movimentos dos indivíduos se vinculam às imagens exteriores, ou seja, quando há a sedimentação dos hábitos dos indivíduos à materialidade que os cerca.

Portanto, as edificações participam da formação da identidade dos indivíduos no momento em que a memória é acionada – seja para garantir orientação espacial, fazer referência a outros lugares visitados ou simplesmente para reavivar lembranças de fatos pessoais ou provenientes da história pública que ocorreram naquele espaço, garantindo a sensação de pertencimento a uma cultura e a um tempo histórico. E, do mesmo modo como ocorre aos objetos, cujas formas perdem as arestas e se abrandam, moldando-se e ganhando expressividade através do manusear constante (BOSI, 2004), as edificações tornam-se mais significativas para os indivíduos na medida em que são incorporadas ao cotidiano.

As edificações que resistiram à passagem do tempo, ainda que tenham suas funções e formas originais alteradas, permitem à contemporaneidade constatar a permanência de alguns valores não só formais, embora a referência seja material, mas também ligados às práticas sociais dos envolvidos na sua produção e manutenção na cidade. Essas edificações tornam-se testemunhos da permanência desses valores na história.

Entretanto, a construção da identidade dos indivíduos não deve ser associada a simples repetição ou manutenção de tradições, pois quando valores e conhecimentos transmitidos são reelaborados no presente se deparam com mudanças, diferenças e transformações que contribuem para a afirmação não só da identidade dos indivíduos, como do próprio tempo (GUARINELLO, 1995).

A condição humana também está representada no espaço habitado, na cidade enquanto história materializada, já que, como declarou Mumford (1938), a cidade é o instrumento material de vida coletiva onde estão solidificados os conflitos e os consensos, ou seja, o pensamento toma forma na cidade, se materializa nas construções e numa infinidade de outras produções humanas. Ao mesmo tempo em que o pensamento é aplicado produzindo formas na cidade, essas formas igualmente condicionarão o pensamento. Delimitando espaços, criando recintos, propondo fluxos, planos, composições, as formas arquitetônicas e urbanas possibilitam a ação da razão na cidade, muito embora, destituída de sentido e de contexto, a forma pela forma perde tal capacidade de fixar as pessoas no espaço e no tempo (HALBWACHS, 2006; MUMFORD, 1938; ROSSI, 2001).

As impressões que temos dos lugares a partir de suas formas são possibilitadas pela memória das experiências vividas naquele determinado espaço ou em outros espaços semelhantes aos quais também nos relacionamos de maneira afetiva. É justamente essa vinculação entre forma e memória que garante aos indivíduos a capacidade de caracterizar e atribuir qualidade ao espaço construído, ou seja, possibilita aos humanos conferir identidades aos lugares.

As construções, assim como a materialidade da qual a cidade é constituída, são, em grande parte, produtos do trabalho humano – coisa humana por excelência, que se destinam a executar funções, mesmo que contemplativas. De acordo com as necessidades dos indivíduos, a paisagem vai se adaptando e formas arquitetônicas são constituídas como respostas às aspirações estéticas e funcionais de cada sociedade. Vinculado à forma está o tipo que se apresenta como uma constante na arquitetura.

A respeito da origem dos tipos, os autores Aldo Rossi (2001) e Giulio Carlo Argan (2001) apresentam argumentações que podem, inicialmente, parecer antagônicas. Para Rossi, o tipo aparece como um ideal que precede e constitui o objeto arquitetônico, respondendo a necessidades formais e funcionais de uma sociedade em determinado momento histórico sendo, por conseguinte, um elemento cultural. O tipo é visto pelo autor como “a própria ideia da arquitetura, aquilo que está mais próximo da sua essência” (ROSSI, 2001, p. 27).

Argan argumenta que o tipo não é formulado a priori, mas sim deduzido de uma série de exemplares já existentes, ou seja, o tipo está submetido à existência prévia de uma série de edifícios que apresentam semelhança formal e funcional entre si. Contudo, a aparente contradição entre os posicionamentos dos autores acontece porque, na verdade, Argan se refere no texto ao tipo enquanto conceito teórico-arquitetônico, em outros termos: o tipo só se fixa enquanto conceito quando deduzido de uma série de edifícios existentes, porém Argan salienta que ele já existe anteriormente enquanto ideia, “numa determinada condição histórica da cultura, como resposta a um conjunto de exigências ideológicas, religiosas ou práticas” (ARGAN, 2001, p. 10).

Podemos entender o tipo, a partir dos dois autores supracitados, como um esquema espacial envolvido em uma aura cultural e ambiental, por isso, não obstante sua determinação prévia de características de necessidade, a forma é também influenciada pela técnica, função e momento histórico. Percebe-se, então, a vagueza que o conceito de tipo pode sugerir. Quatremère de Quincy (1832), citado pelos dois autores, ao discorrer sobre as mudanças formais que os objetos sofrem ao longo dos anos salienta a existência anterior fundamental de um princípio elementar do sentimento e da razão que, embora despido de suas características de forma, é conservado nas modificações do objeto.

Sob esse ponto de vista, nenhum tipo se identifica com uma forma, ainda que todas as formas sejam redutíveis a tipos, e esse processo é, para Rossi, o postulado fundamental para o estudo da forma sem o qual seria impossível problematizá-la, uma vez que é uma ação lógica do pensamento. Ainda segundo o autor, a tipologia é o modelo analítico da arquitetura capaz de estudar os tipos arquitetônicos na complexidade do tema.

Ao pensarmos o tipo dentro desse processo de redução, não devemos entendê-lo como uma síntese estrutural determinante, mas como um princípio ou um esquema que possibilita infinitas variações formais. Argan (2001) acrescenta a isso a ideia de que os tipos podem sofrer mutações quando uma nova variante formal, solicitada para responder às exigências do seu momento histórico, for acrescentada à série formal anterior da qual o tipo havia sido deduzido, ou seja, a liberdade inventiva possibilitada pelo tipo promove modificações posteriores na sua própria estrutura.

Assim, a inventividade está subordinada a responder às necessidades do momento histórico da criação, superando as soluções sedimentadas transmitidas pelos tipos. Conclui-se, a partir dos dois autores, que a história exerce papel fundamental nos processos de criação e transformação do objeto arquitetônico e, por conseguinte, na construção de identidades urbanas.

Não obstante, a influência da história nas mutações sofridas pelos tipos e a permanência material das séries tipológicas na cidade é possível através de processos onde a memória é protagonista. Nas seleções, intencionais ou não, entre o preservar e o demolir, a memória é utilizada ideologicamente a fim de garantir a preservação de símbolos de necessidades ou aspirações de alguns grupos em determinado momento histórico.

3 Memória e Poder

A memória coletiva pode ser vista como construção simbólica, na medida em que pode ser interpretada a partir de fatos representativos de grupos sociais que funcionam como seu suporte. Entretanto, para manter-se, precisa ser constantemente reanimada e, por isso, estruturas que promovam a vivência dessa memória são imprescindíveis para sua manutenção. Neste sentido, as edificações tornam-se elementos simbólicos e sua preservação na cidade pode, enquanto representação da sociedade, estar vinculada a processos de inclusão ou exclusão social.

Várias memórias coletivas podem coexistir, mas a somatória delas não resulta na memória nacional5, que é da ordem da ideologia e que procura integrar e unificar os indivíduos através da escamoteação de conflitos (MENEZES, 1992). O Estado e grupos dominantes, muitas vezes, utilizam, ideologicamente, de memórias que lhe sejam favoráveis para a construção de uma memória dita nacional, suprimindo outras memórias coletivas.

Contudo, há no interior dessas reflexões duas características da memória que são imprescindíveis para a sua compreensão enquanto instrumento de poder, a saber: I) ela é seletiva e, por conseguinte, II) a memória é um fenômeno construído. O caráter seletivo da memória é certamente indispensável para a vida humana, já que seria impossível para qualquer indivíduo guardar todos os acontecimentos que lhe passassem durante a vida, do mesmo modo como teríamos o colapso de uma cidade que mantivesse todas as suas edificações desde sua origem. O esquecimento, nesse sentido, é essencial para a vida tanto dos humanos quanto da cidade.6 Em decorrência da seletividade, alguns fatos são registrados e outros são esquecidos, ou seja, o que será preservado na memória dos indivíduos é escolhido em função de interesses pessoais ou políticos pertinentes a determinado momento e, nesse sentido, a memória pode se tornar um instrumento de dominação, assim como o esquecimento (LE GOFF, 2003; POLLAK, 1989; POLLAK, 1992; SANTOS, 2003).

No âmbito da cidade, a preservação de obras de arquitetura ao longo do tempo serve como testemunho do poder. Inclusive construções antigas que só permanecem na cidade por se localizarem em áreas esquecidas, também representam o poder de alguns grupos, que são fortalecidos na medida em que a condição de abandono e precariedade demonstra qual imagem deve ser abandonada. Áreas se transformam, ainda que involuntariamente, em documentos no sentido atribuído por Le Goff (2003), ou seja, documento enquanto monumento é fruto de imposições de sociedades históricas para criar uma determinada imagem de si.

A abordagem histórica, na medida em que desvela os discursos por trás da manutenção de áreas abandonadas, corrobora para a compreensão das suas condições de produção e permanência. A história torna-se a chave de acesso à memória coletiva e, sem ela, a capacidade de esquecimento e de lembrança ficaria à mercê das relações de poder.

Evidencia-se a distinção entre memória coletiva e história. Halbwachs (2006) alegava que apesar de ambas trabalharem com o passado o que as distinguia era a forma de abordagem. Para ele, a História analisava os grupos de fora, numa posição acima deles, enquanto a memória coletiva estava inserida na consciência coletiva desses grupos. Para o autor, a História lidava arbitrariamente com o passado através de compilações de fatos maiores, que muitas vezes estavam distantes demais dos indivíduos, apresentando pouquíssimos pontos de contato com suas histórias pessoais e, por isso, a História não poderia ser confundida com a memória coletiva. Igualmente, o autor considerava inadequada a expressão “memória histórica” uma vez que associa dois termos opostos radicalmente.

Posteriormente aos escritos de Halbwachs7, com o alargamento da noção de documento e o advento da revolução documental, os interesses da História são ampliados e ela deixa de tratar exclusivamente dos grandes feitos para ocupar-se de todos os homens, as “massas dormentes”, como denominou Le Goff (2003). Nesse contexto, Foucault elabora sua argumentação a respeito do papel da História na abordagem dos documentos, deixando clara a distinção entre memória e história.

Entende a memória como objeto da História, como a construção social de um quadro simbólico que ajuda a compor e a reforçar a identidade individual ou coletiva. A memória é, portanto, uma operação ideológica de representação de si que guia a atuação dos indivíduos nas relações sociais e, por isso, deve ser analisada no domínio das representações sociais. A História é operação cognitiva, procedimento intelectual e científico de questionamento dos documentos e é justamente essa ação crítica, investigativa e metodológica que transforma os documentos em monumentos (FOUCAULT, 2000).

Enquanto Halbwachs percebia que a memória, através de um mosaico de preleções distantes dos grandes feitos, organizava a sociedade, Foucault procurava apontar as estratégias de poder que compunham esses discursos, atribuindo-lhes um sentido disciplinador e excludente. Apoiado no conceito nietzscheano de Wirkliche Histoire8 ou História Efetiva, Foucault define o papel da História justamente como o de investigar e analisar esse mecanismo.

A história “efetiva” faz ressurgir o acontecimento no que ele pode ter de único e agudo. É preciso entender por acontecimento não uma decisão, um tratado, um reino, ou uma batalha, mas uma relação de forças que se inverte, um poder confiscado, um vocabulário retomado e voltado contra seus utilizadores, uma dominação que se enfraquece, se distende, se envenena e uma outra que faz sua entrada, mascarada (FOUCAULT, 1998, p. 28).

Foucault também afirmava que a história é sempre um saber perspectivo, já que os historiadores analisam os fatos a partir de determinado ponto de vista, por mais que não queiram revelar o momento e o lugar de onde olham. Segundo ele, o sentido histórico, para Nietzsche, tem consciência da injustiça desse processo e “é um olhar que sabe tanto de onde olha quanto o que olha” (FOUCAULT, 1998, p. 30). Igualmente, aproxima-se a este pensamento o conceito de “trabalho de enquadramento da memória”, proposto por Pollak (1992), que o define como um trabalho parcialmente exercido pelos historiadores com o intuito de enquadrar a memória aos interesses de determinados grupos, quando envolvidos em disputas pelo poder. Cabe aqui a ressalva de Meneses (1998) quando afirma que o artefato não mente, pois sua integridade física obedece a verdade objetiva; “os discursos sobre o artefato é que podem ser falsos” (MENESES, 1998, p. 04).

A história das cidades também pode ser montada ou enquadrada a partir de imagens que grupos dominantes pretendem transparecer para garantir seus interesses econômicos. Discursos ideológicos de poder podem ser identificados facilmente nas cidades ao longo de sua trajetória como, por exemplo, implantados através de medidas urbanísticas que valorizam determinadas áreas dentro da cidade, ou através da seleção de áreas e obras arquitetônicas pelo Estado, e pela “preservação” ou permanência de edificações e áreas em decorrência do abandono e desinteresse econômico, entre outros.

A discussão sobre a seletividade entre o preservar e o demolir na ação dos órgãos públicos responsáveis parece, em muitos casos, querer ser tomada como neutra em relação ao papel político exercido pela memória. Em outros tantos, essa ideia de neutralidade é repassada a própria memória resgatada, tomada como universal, de modo a mascarar os interesses que norteiam a atuação do Estado ao consagrar um lugar em detrimento de outros.

Entretanto, vale ressaltar que ao contrário dos discursos sobre o engessamento das cidades através da preservação, a produção do novo é fundamental não só para a dinâmica urbana como também para a própria reelaboração da memória nos espaços de permanência, desde que essa substituição seja socialmente responsável. Meneses (1992) propõe duas condições para essa ação:

A primeira é a verificação do esgotamento do potencial funcional do bem em causa, a impossibilidade não só de maximizá-lo (o que, com as tecnologias modernas, torna-se mais e mais factível), mas também de reciclá-lo ou simplesmente mantê-lo. A seguir, deve-se responder satisfatoriamente a duas perguntas seminais: a quem interessa o novo? Quem responde pelo ônus? Esta postura não comporta, pois, rigidez ou imobilismo; pelo contrário, está aberta ao poder de fecundação, criação, ampliação do novo, não a suas forças de degradação (MENESES, 1992, p. 9).

4 Considerações finais

O estudo das permanências no âmbito da cidade permeia, necessariamente, a compreensão dos processos que as envolveu na sua formação e manutenção. Vimos que determinadas áreas são mantidas na cidade simplesmente por não serem, ainda, alvos do mercado e que sua posição de abandono revela e reafirma a dominação de alguns grupos.

A eleição das áreas que devem ou não permanecer na cidade ficam subordinadas ao interesse de alguns grupos sociais que, através de discursos ideológicos, garantem a manutenção de determinadas memórias quer por interesses econômicos, quer por estratégias de controle social. Segundo Pollak (1989), a disputa pela preservação e, portanto, a construção da memória, está muito mais ligada a problemas entre grupos minoritários e sociedade englobante do que à oposição entre sociedade e um Estado dominador.


Referências

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LE GOFF, J. História e memória. Campinas: Ed. Unicamp / Centro de Memória, 2003.

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POLLAK, M. Memória, esquecimento, silêncio. Revista Estudos Históricos, n. 3, p. 03-15, 1989.

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MUMFORD, L. The culture of cities. Nova Iorque: Hartcourt Brace, 1938.

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SANTOS, M. S. Memória coletiva e teoria social. São Paulo: Ed. Annablume, 2003.

 

1 Segundo Barros (1989), Halbwachs era adepto do pensamento da escola sociológica francesa – durkheimiana, que via o ser humano como produto do meio social. Por isso, foi um dos primeiros autores a inserir a presença do social nas discussões sobre memória, que então era tratada a partir de visões introspectivas.

2 O roteiro do filme foi escrito por Hampton Fancher e David Peoples, baseado na novela Do Androids Dream of Electric Sheep?, ficção científica de Philip K. Dick escrita em 1968.

3 Filme de 2001, com direção e roteiro de Christopher Nolan.

4 Alusão ao pensamento de Bosi (1994) que associa memória a trabalho justamente pela necessidade de reconstruir, repensar, refazer o passado com os referenciais do presente.

5 POLLAK (1989) afirma que, para a tradição europeia do século XIX, a memória nacional era a forma mais completa de uma memória coletiva e esse pensamento, segundo o autor, está refletido no trabalho de Halbwachs, principalmente quando ele insinua um processo de negociação entre as memórias coletivas e individuais, segundo o qual indivíduos deveriam ceder em favor da adequação a uma base única.

6 Segundo SANTOS (2003), essa questão remete às reflexões de Nietzsche a respeito do eterno retorno que, para ele, seria a maior dificuldade a ser enfrentada pelos humanos, já que a vida é absolutamente impossível sem o esquecimento – não no sentido de perda de memória, considerada irremediável, mas enquanto pré-requisito para a existência.  Contrapondo a teoria de Milan Kundera, em A Insustentável leveza do ser, para quem a vida humana se tornaria insuportável livre do peso do passado, Nietzsche defende que sem a lembrança os seres humanos seriam felizes.

7 Suas publicações são do início do século XX, sendo A memória Coletiva, de 1950, publicação póstuma. Maurice Halbwachs, socialista, foi preso pela Gestapo após a ocupação nazista de Paris e foi deportado para o campo de concentração de Buchenwald e, em 1945, executado.

8 Segundo FOUCAULT (1998), Nietzsche opõe ao conceito de História como pesquisa de Ursprung (origem) o de Wirkliche Histoire como pesquisa de Herkunft (proveniência) e de Entestehung (emergência). Como crítica ao modelo tradicional da História que procurava o início das coisas em estado de perfeição (Ursprung/origem), Nietzsche propôs um modelo de estudo que tomava a dinâmica ou as forças propulsoras da origem (Herkunft/proveniência) e quando e de que modo elas vêm à tona (Entestehung/emergência). Desta forma, a “genealogia restabelece os diversos sistemas de submissão: não a potência antecipada de um sentido, mas o jogo casual das dominações” (FOUCAULT, 1998, p. 23).

Memory, social practices and identity in urban context

Maria Carolina Mazivieiro

Maria Carolina Mazivieiro is Architect, Doctor in History of Architecture and Urbanism, and teaches at the Universidade São Judas Tadeu. She studies the relationship between technology and territory, exploring the widening understanding of the city in recent decades.


How to quote this text: How to quote this text: Mazivieiro, M. C. Memory, social practices and identity in an urban context. V!RUS, São Carlos, n. 16, 2018. [e-journal] [online] [online] Available at: <http://www.nomads.usp.br/virus/virus16/?sec=4&item=5&lang=en>. [Accessed: 07 October 2024].


Abstract

This article addresses the construction of memory as an essential element for human condition. To speak of memory is to speak of the human present once memory enables people not only to situate themselves in time but also to belong to a space, thus, the formation of either collective or individual identities is associated to the memory. Memory refers to the past, but is constantly reformulated in present according to individual’s available knowledge. It is therefore, work, as it needs this constant reconstruction of the past from the present references (Bosi, 1994). Thus, the core objectives of this article are: i) to understand how physical support becomes an essential reference for social practices and affirmation of identity, and ii) to discuss the preservation as instrument of power, from the understanding of production conditions and permanence of physical support. For such, this article seeks to recover and critically review the basic literature on the theme of memory construction related to the constructed types. As a result, there was an attempt to corroborate to the repositioning of belonging and citizenship values, including the own concept of heritage, adding to the study of permanence, the understanding of symbolic struggles involving them.

Keywords: Urban identity, Constructed typology, Memory and power


1 Memory and identity

Living in the city means being daily in touch with the different, even if the other is crystallized in inanimate physical structures. Through their spatial layout, the way that they are positioned or its configuration, such structures refer us to habits and customs of some groups to which we may be or may be not connected. It is by this relationship with the otherness through direct or mediated contact that we assure daily our individuality.

Although we individually constructed the social practice images individually while our references are created from individual memories, we need to rely on external reference points to evoke them (Halbwachs, 2006). According to the author, it is vital the participation of the social group and the collective memory in the reconstruction of recollections, making the memory a social phenomenon.1

The individual, however, is still determinant for social thought. Each person has a flow of entirely personal impressions of the social facts, that is, each individual memory has its own point of view of collective memory, and this subjectivity is related to the individual social stand, which also varies according to the relationships networked in other means.

In these relationships, the objects participate as a kind of silent society assuring the shaping of references set that adapt to our perceptions of present and ground our staying in the city. Such objects themselves present only material features, and their values and roles in social relationships are human attributions other than intrinsic characteristics of things. It is certain that the material features of objects - such as their raw material, techniques of production, shape, uses and signs indicating their operational conditions, form a set of data allowing conclusions about the socioeconomic organization of individuals involved in the existence of these objects. However, one must look for the meaning of things outside of such objects, even if their materiality allows such reasoning (Meneses, 1998). Moreover, if such production and consumption of meaning are human-mediated processes, they are historically marked.

Therefore, the memory - as the attribute that places human beings in time, giving them the perception of their finitude - needs these material structures that are closely linked to the maintenance of our capacity to remember in order to form and maintain the identities.

Identity can be defined as something that differentiates a social individual from others, something that grants peculiarity to biographies, and yet, as the individual’s global understanding of their place in society. This process of self-affirmation takes place daily, at the same moment that we are in touch with the other and we confront psychic, ideological or aesthetic structures to the memory of what we claim to be.

Therefore, loss of memory would be associated to loss of identity. This phenomenon appears as one of the great threats in modern world: the work becomes constituted of mechanical and repetitive acts for which the learning of life loses meaning. The emergence of writing and the end of oral tradition, the immediacy of the present, individualization, among other factors, point to the loss of the values transmission and knowledge between generations (Bosi, 1994; Santos, 2003).

Within the perspective that memory should be built from social bonds, Hannah Arendt (1992) states that modern individuals live a "limited happiness" since they not only lose their memory but also their ability to think over that loss. Once individuals are made up of desires, longings, and behaviors that are not contained in themselves but in collective practices, the perception of the state of full happiness becomes unreachable without the reference of memory; "it is only on very rare occasions that the human mind is able to retain something entirely disconnected" (Arendt 1992, p. 31). Nevertheless, the author disregards the fundamental role of physical supports in the reflection of memory, inasmuch as she attributes her fundamentally elaboration to social relations between human beings.

This fundamental link between memory and identity, where memory appears as the key element to the human condition, it has been explored in fiction films like, The Blade Runner, Memento, and so many others.

The first one2, directed by Ridley Scott, takes place in the year 2019 and chronicles the struggle of androids (creatures created to serve as soldiers) to survive beyond the four planned years for their adult life. Androids, called "replicants," have no memory, but they struggle to form their own identity. In this sense, the story of the replicant Rachel is significant because her identity is built up from implants of human memory fragments (from Tyrell's niece, the creator of the replicants) associated to objects referring to a family history in the past, such as photographs scattered through the house, for example. Memories are used as evidence to cover up her condition as android; that is, to understand oneself as human it is necessary to create some past to the present, no matter if it is false. That is why Rachel clings so much to the evidence of her past.

In "Memento”3, the protagonist Leonard loses his ability to convert short-term memory into long-term memory after suffering a head injury when he tried to save his wife from an attack. After this event, Leonard is unable to remember facts, people he meets, or his actions in the present; that is, his recent experiences are not lasting memory and disappear. Although his memories before the accident were not erased, the character's identity at present is not stable because part of his story was not recorded. Leonard does not know how long ago the accident happened; he does not recognize himself in the present and becomes a toy in the hands of other characters in the plot. To find his wife's killer, Leonard photographs, makes notes on paper, and tattoos the clues he finds important on his own body. The lack of memories on part of a period of his story breaks his understanding of time, destabilizes identity, disables conscious action in the present, and prevents future projections.

According to Le Goff (2003), it was exactly the unstable character of memory that led the surrealism to question it as a product of the fragile and misleading imagination while deserving André Breton’s special attention in his Manifeste du Surréalisme, 1924. Halbwachs (2006) approaches this questioning when he states that the recollection is an image constructed through the available materials in the present and from our current perception - that varies along with time. To the past remembered in the present there are associated points of view, which makes memory something related to the time and spatial place occupied by the individual, that is, the "work"4 of memory is made from fragments of the past inserted by fragments of the present.

Resulting from this process of re-elaboration of the past in contemporary times, when an old object (or an old building) has its original function transformed to integrate museum collection, decoration or to become a monument, various different values can be attributed to what it used to be in its origin. Features to exercise the original function remain in the object or in the old construction. However, when it becomes a monument, its value of use becomes cognitive only, that is, the original function can only be accessed through memory and the space works as a kind of support for memory. Objects or constructions have the property of evoking memories that, at present, contribute to the construction of identity in individuals.

2 Memory and Space: typology and urban identity

Disoriented with regard to the cardinal points, deprived of the plan that gave meaning to their knowledge, the natives rapidly lese their sense of traditions, as if their social and religious systems (we shall see that they are inseparable) were too much complex to dismiss the schema made visible in their ground-plans, and reaffirmed to them of their daily rhythm of their lives (Lévi-Strauss, 1957, p. 231, our translation).

In this passage of Triste Trópicos, we can note not only the influence of the environment on the affirmation of identity but also the constant need of the work to the memory together as the place to make such an possible affirmation. The set of objects that surround us, as well as the environment in which they are inserted, act as a driving element of this process in which memory and identity are reconstructed and restated daily.

There are objects that stand out from others because they represent a lived experience and are, therefore, stored and incorporated into the life of the owner as an icon through which memory accesses that memorable fact. Violette Morin (apud BosI, 2004, p. 441) called these objects, biographical objects, for keeping the life memories of the owners as they are cherished to the point of aging together, giving the person the sense of continuity.

We can transpose the relationship between biographical objects and their owners to the built heritage. The constructions tell us an important part of the relations between cities and their inhabitants. The way they are laid out in space, the materials and techniques employed in their construction, or even the aesthetic standards used to give them form and color are elements that corroborate to bring up the memory of the individuals that are related in that space.

It is observed that the human adaptation to a certain place is favored by the permanence of the landscape and the immobility of the people. According to Halbwachs (2006), this appropriation of place happens when the thoughts and movements of individuals are bound to the external images, that is, when the individual’s habits are settled on the materiality that surrounds them.

Buildings, therefore, participate in the formation of the identity of individuals at the moment the memory is activated - whether to guarantee spatial orientation, to refer to other places visited, or simply to bring back memories of personal or historical facts that occurred in that space, guaranteeing the sense of belonging to a culture and a historical time. Moreover, just as happens to objects whose forms lose their edges and are softened, reshaping and gaining expressiveness through constant manipulation (Bosi, 2004), the buildings become more meaningful to individuals as they are incorporated into their daily life.

Buildings that have resisted the passage of time, even though their original functions and forms had been altered, allow contemporaneity to witness the permanence of some values that are not only formal - despite its reference is material - but also linked to the social practices of players involved in its production and maintenance in the city. These buildings become testimonies of the permanence of these values in history.

However, the construction of the identity of individuals should not be associated with simple repetition or maintenance of traditions, because when transmitted values and knowledge are reworked in the present, they face changes, differences, and transformations that contribute to the affirmation not only of the identity of individuals, as of time itself (Guarinello, 1995).

The human condition is also portrayed in the inhabited space, in the city as a materialized history, since, according to Mumford (1938), the city is the material instrument of collective life where conflicts and consensuses are solidified, that is, the thought is shaped in the city, is materialized in both constructions and in the infinity of other human productions. At the same times that the thought is applied to produce forms in the city, these forms will also shape such thought. Architectural and urban forms enable the action of reason in the city, delimiting spaces, creating enclosures, proposing flows, plans, and compositions. Though devoid of meaning and context, form by the form itself may lose its capacity to fix people in space and in time (Halbwachs, 2006; Mumford, 1938; Rossi, 2001).

The impressions we have of places from their forms are only possible because of the memory of lived experiences in that particular space or in other similar spaces to which we also relate affectively. This connection between form and memory enables individuals to characterize and assign quality to the constructed space, that is, it allows humans to confer identities to places.

The constructions, as well as the materiality of which the city is mostly constituted, are products of human work - the exclusively human capacity to perform functions, even the contemplative functions. Based on the needs of individuals, the landscape is adapted while architectural forms are established as responses to the aesthetic and functional aspirations of each society. Linked to form is the type, which presents itself as a constant in architecture.

Regarding the origin of types, the authors Aldo Rossi (2001) and Giulio Carlo Argan (2001) present arguments that may initially appear conflicting. For Rossi, the type appears as an ideal that precedes and constitutes the architectural object, responding to formal and functional needs of a society at a given historical time, therefore, it represents a cultural element. The author considers the type as "the very idea of architecture, that which is closest to its essence" (Rossi, 2001, p. 27).

Argan claims that the type is not formulated a priori, but rather implied from a series of already existing examples, that is, the type is subject to the prior existence of a series of buildings that present formal and functional similarity to each other. However, the apparent contradiction between the authors positioning is because Argan actually writes about the type as a theoretical-architectural concept, in other words, the type can only be a concept when drawn from a series of existing buildings. However, Argan points out that it is previously exists as an idea, "in a given historical condition of culture as a response to a set of ideological, religious or practical demands" (Argan, 2001, p.10, our translation).

We can understand the type, from the two authors mentioned above, as a spatial scheme involved in a cultural and environmental aura, so, despite its prior determination of features of needs, the form is also driven by the technique, function, and historical moment. We can see, thus, the vagueness that the concept of type may suggest. Quatremère de Quincy (1832) quoted by the two authors, in discussing the formal changes that objects undergo over the years, points out the fundamental previous existence of an elementary principle of feeling and reason that, although stripped of its characteristics of form is preserved in the modifications of the object.

In this view, no type identifies itself with a form; although all forms are reducible to types, and this process is, for Rossi, the fundamental postulate for the study of form otherwise it would be impossible to problematize it, once it is a logical action of thought. Still according to the author, typology is the analytical model of architecture that can study architectural types in its complexity.

When we think of the type within this process of reduction, we should not understand it as a determinant structural synthesis, but as a principle or a scheme that allows endless formal variations. Argan (2001) adds to this, the idea that types can mutate when a new formal variant, requested to respond to the demands of its historical moment, is added to the previous formal series from which the type was deduced, that is, the inventive freedom enabled by the type promotes further modifications in its own structure.

Thus, inventiveness is subjected to respond to the needs of the historical moment of creation, overcoming the settled solutions transmitted by types. According to the two authors, it is concluded, that the history plays a fundamental role in the processes of creation and transformation of the architectural object and, consequently, in the construction of urban identities.

Nevertheless, the influence of history on the mutations suffered by the types and the material permanence of the typological series in the city is possible through processes where memory is the protagonist. In selections, intentional or not, between preserving and demolishing, memory is used ideologically to ensure the preservation of symbolic needs or aspirations of some groups at a particular historical moment.

3 Memory and Power

Collective memory can be regarded as symbolic construction as it can be interpreted from representative facts of social groups that work as its support. However, for its preservation, collective memories constantly need to be reaffirmed and, therefore, structures, that promote such memory experience, are essential for its maintenance. In this sense, buildings become symbolic elements while their preservation in the city as a representation of society may be linked to processes of social inclusion or exclusion.

Several collective memories may coexist, but the sum of them does not result in the national5 memory, which includes ideology and seeks to integrate and unify individuals through the avoidance of conflicts (Meneses, 1992). The State and dominant groups often ideologically use memories in favor of the construction of a so-called national memory, suppressing other collective memories.

However, within these reflections there are two memory features essential for its understanding as an instrument of power, namely: i) it is selective and, therefore, ii) memory is a constructed phenomenon. The selective character of memory is certainly essential for human life since it would be impossible for any individual to keep all the events that happened to them during their life, just as the city would collapse if it kept all its buildings from its origin. Forgetfulness, in this sense, is essential for the lives of both humans and the city.6 Because of selectivity, some facts are recorded and others are forgotten, that is, the facts to be preserved in the memory of individuals are chosen according to personal or political interests related to a given moment; in this sense, both memory and oblivion can become an instrument of domination (Le Goff, 2003; Pollak, 1989; Pollak, 1992; Santos, 2003).

Within the city, the preservation of architectural work over time serves as a testimony of power. Even old buildings that remain in the city because they are located in forgotten areas also represent the power of some groups, which are strengthened to the extent that the condition of abandonment and precariousness determine the image to be rundown. Areas are transformed into documents, albeit involuntarily, in the sense attributed by Le Goff (2003), that is, document as monument is result from historical society impositions to create a certain itself image.

The historical approach, insofar as it reveals the discourses behind the maintenance of abandoned areas, reaffirms the understanding of their conditions of production and permanence. History becomes the access key to collective memory, and without it, the ability for forgetting and remembering would be at the mercy of power relations.

The distinction between collective memory and history is clear. Halbwachs (2006) argued that both worked with the past, but the way to approach them is a great distinction. For him, history analyzed the groups from an external higher position while the collective memory was part of the collective consciousness of these groups. For the author, history arbitrarily dealt with the past through compilations of larger facts, which are often too distant from individuals, presenting very few points of contact with their personal stories, and therefore, history and collective memory should not be mistaken. Likewise, the author considers inadequate the term "historical memory", since it associates two radically opposite expressions.

After the writings of Halbwachs7, with the extension of the awareness of document and the emergence of the documentary revolution, the interests of history are enlarged while it stops dedicating exclusively to the great deeds in order to deal with all men, the "sleeping masses”, as Le Goff (2003) called it. In this context, Foucault elaborates his argument about the role of history in the approach of documents, making clear the distinction between memory and history. He understands memory as the object of history, as the social construction of a symbolic framework that helps to compose and reinforce individual or collective identity. Memory is, therefore, an ideological operation of self-representation that guides the performance of individuals in social relations and, therefore, must be reviewed in the domain of social representations. History is the cognitive operation, the intellectual and scientific procedure of questioning of documents, and this critical, investigative and methodological action that transforms documents into monuments (Foucault, 2000).

While Halbwachs perceived that memory, through a mosaic of lectures distant from great deeds, organized the society, Foucault sought to point out the strategies of power implicit in such discourses, assigning to them a disciplining and excluding meaning. Based on the Nietzschean concept of Wirkliche Histoire8 or Effective History, Foucault defines the role of history just as that of investigating and analyzing this mechanism.

‘Effective’ history rise again the event on its uniqueness and sharpness. One must understand by event not a decision, a treaty, a domain, or a battle, but a reversed relation of forces, a seized power, a resumed vocabulary turned against its users, a domination that is weakened, stretched, is intoxicated, and another power that makes its entrance, masquerade (Foucault, 1998, p. 28, our translation).

Foucault also stated that history is always knowledge of perspective since historians review the facts from a certain point of view despite their unwillingness to reveal the moment and the place from which they look at it. According to him, Nietzsche's historical sense is aware of the injustice of this process and "the vision that knows both from where it looks and what it looks at" (Foucault 1998: 30). Likewise, the concept of “memory framing effort" proposed by Pollak (1992) which defines it as the work partially exercised by historians in order to frame the memory as the interests of particular groups involved in power disputes. It is here the objection of Meneses (1998) when he affirms that the artifact does not lie because its physical integrity obeys the objective truth; "The discourses about the artifact may be false though" (Meneses, 1998, p.4).

Cities history can also be assembled or framed from images that dominant groups intend to show to guarantee their economic interests. Ideological discourses of power can easily be identified in cities along their trajectory, for example, implemented through urban measures that value certain areas within the city or through areas selection and architectural works by the State, and by the "preservation" or permanence of buildings and areas due to abandonment and economic disinterest, among others.

The discussion about selecting either preservation or demolition by the relevant public management seems to be neutral in some cases in terms of the political role played by memory. In so many others, this idea of neutrality is passed on to the rescue memory itself, which has been taken as universal, in order to mask the interests that guide the State's action by elect one place to the detriment of others.

However, it is worth emphasizing that, in opposition to the discourses on the full preservation of cities, the construction of new is essential not only for the urban dynamics but also for the own re-elaboration of memory in permanence spaces, since this replacement is socially sustainable. Meneses (1992) proposes two conditions for this action:

The first is the verification of the exhaustion of the functional potential of the asset in question, the impossibility not only of maximizing it (which, with modern technologies, becomes more and more feasible), but also of recycling it or simply, keeping it. Then, one must reasonably answer two primary questions: who is interested in the new? Who is responsible for the burden? This approach does not imply stiffness or immobility; on the contrary, it is open to the power of fertilization, creation, expansion of the new, but not to its forces of degradation (Meneses, 1992, p. 9, our translation).

4 Final considerations

The study of permanencies within the city necessarily permeates the understanding of the processes involved in their formation and maintenance. We have seen that certain areas are maintained in the city simply because they are not yet targets of the market and their position of abandonment reveals and reaffirms the domination of some groups.

The election of the areas that should or should not remain in the city is subordinated to the interest of some social groups that, through ideological discourses, guarantee the maintenance of certain memories either due economic interests or strategies of social control. According to Pollak (1989), the struggle for preservation, and therefore, the construction of memory, is rather related to problems between minority groups and overarching society than to the opposition between society and a dominating State.



References

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1 According to Barros (1989), Halbwachs was adept to the thought of the French-Durkheimian sociological school, which sees the human being as the product of the social environment. For this reason, he is one of the first authors to include the presence of the social in the discussions about memory, which was up to then seeing from introspective visions.

2 The screenplay was written by Hampton Fancher and David Peoples, based on the novel Androids Dream of Electric Sheep?, science fiction written by Philip K. Dick in 1968.

3 2001 film, direction and screenplay by Christopher Nolan.

4 Mention to the thought of Bosi (1994) that associates memory with work because of the need to reconstruct, rethink, remake the past with the references in the present.

5 Pollak (1989) argues that for the nineteenth-century European tradition, national memory was the most complete form of a collective memory, and this thought, according to the author, is reflected in Halbwach's work, especially when he implies a negotiation process between collective and individual memories, according to which individuals should yield in favor of adjustment to a single basis.

6 According to Santos (2003), this question refers to Nietzsche's reflections on the eternal return that according to the author would be the greatest difficulty to be faced by humans, since life is impossible without forgetting - not in the sense of loss of memory, considered irremediable, but as a prerequisite for existence. Contrary to Milan Kundera's theory, In: The Unbearable Lightness of Being, for whom human life would become unbearable free from the weight of the past, Nietzsche argues that without remembrance human beings would be happy.

7 His publications are from the early twentieth century, being The Collective Memory, 1950, posthumous publication. Maurice Halbwachs, a socialist, was arrested by the Gestapo after a Nazi occupation of Paris and was deported to the Buchenwald concentration camp where he was executed in 1945.

8 According to Foucault (1998), Nietzsche opposes the concept of history as a research of Ursprung (origin) and Wirkliche Histoire as a research of Herkunft (provenance) and Entestehung (emergence). As a critique of the traditional model of history which sought the beginning of things in a state of perfection (Ursprung / origin), Nietzsche proposed a model of study that took the dynamics or propulsive forces of origin (Herkunft / provenience) and when and how they come to the surface (Entestehung / emergency). In this way, "genealogy reestablishes the various systems of submission: not the anticipatory power of meaning, but the hazardous play of dominations" (Foucault 1998: 23).