Anne Marie Sumner é Arquiteta, Doutora em Estruturas Ambientais e Urbanas e Professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie.


Como citar este texto

SUMNER, A.M. Portos de areia e mananciais: uma ocupação. V!RUS, São Carlos, n.4, dez. 2010. Disponível em: < http://www.nomads.usp.br/virus/virus04/testing/?sec=7&item=1&lang=pt >. Acesso em: dd mmm. aaaa.


Resumo

O texto e o projeto debruçam-se sobre as hipóteses espaciais de ocupação em área adversa tendo como vetor intelectual a articulação de uma ação ética, técnica e estética. A reflexão parte da reduzida infraestrutura nas áreas citadas, que caracteriza o limite do contrato social desta sociedade, qual seja, a nossa. Procura pensar a implantação do projeto com ênfase em uma abordagem infraestrutural articulada com uma apreensão ótica da geografia e da paisagem. Toma partido das variações dos níveis topográficos dos portos de areia, que de crateras transformam-se em lagos. No nível plano das águas, os extensos trapiches públicos replicam e possibilitam o uso desta acentuada extensão horizontal, novamente possibilitando a apreensão ótica da geografia e das águas.


Palavras-chave

ética, técnica, estética, infraestrutura, apreensão ótica.

Portos de Areia e Mananciais: uma ocupação

"Não compreendo o poeta alheio ao problema político, já que cabe ao político resolver na prática a proposta lírica que o poeta faz ao mundo" Lupe Cotrim.


Uma das questões que instigou tanto o projeto ora apresentado, quanto a reflexão intrínseca a ele, é a de uma situação de adversidade ambiental que paradoxalmente torna-se uma potência latente, de projeto e consequentemente de cidade. Refiro-me aos portos de areia como áreas de ocupação urbana.

A ocupação irregular dos manancias em São Paulo coloca o paradoxo de poluirmos aquilo que nos abastece. Mas não apenas esta ocupação já está dada, como sua parcela maior foi recentemente regularizada pelo poder público. O espraiamento de São Paulo, ao mesmo tempo em que leva populações a periferias distantes acaba enraizando-as, por força das circunstâncias, nestas mesmas áreas. Posto que a área deva receber, preferencialmente no mesmo local, as remoções de populações em locais de risco - aquelas às margens do manancial e sobre os córregos e rios - a questão que se coloca é de como fazer cidade onde já há uma urbanização sem cidade? Os portos de areia existentes espalhados pela região de entorno do Reservatório Billings, assim como na região de Capela do Socorro, área de estudo do Projeto (ver figura 2), poluíram o solo e os respectivos lençóis freáticos e ao mesmo tempo, contribuíram para a construção de São Paulo. Alguns, agora abandonados e na perspectiva de serem tratados e ocupados - centro de nossa proposta - constituem pelas suas dimensões (o Porto 1 que abriga o primeiro piloto, tem 33ha - ver figuras 7 e 8) a possibilidade espacial de se construir nesta vizinhança, fragmentos efetivos de cidade. Não seria esta ação um desenho de coexistência, por mais brutal que possa ser seu entorno? A criação destes fragmentos de cidade não seriam, um a um, indutores de cidade? Foi esta a nossa hipótese.

Do ponto de vista de uma reflexão mais abrangente, a cidade como possibilidade plena dos cidadãos dá-se fundada em uma relação entre civilização e cultura, onde a primeira realiza e concretiza a invenção e hipótese da outra. A defasagem monumental entre rede de infraestrutura e malha urbana em muitas cidades e metrópoles brasileiras indicam o limite, e um translado de situação desta urbanidade.

A metrópole é a manifestação exacerbada da cidade contemporânea com todas as deformações correlatas a esta exacerbação de escala. É também, das condições urbanas contemporâneas, a mais complexa e do ponto de vista da produção de conhecimento, seguramente a mais instigante.

Pensar a relação arquitetura e metrópole é proporcionar a sua funcionalidade infraestrutural, que passa entre outras coisas pela sua descongestão e respiração. Mas é também apreendê-la; seus traçados, sua geografia. Os portos de areia e os mananciais fazem parte desta inquietação. Como pensar a geografia e infraestrutura em uma apreensão ótica de paisagem?

Deste modo, como equipe multidisciplinar de projeto, entendemos que a articulação entre ética, técnica e estética na ação da arquitetura, é o que possibilita a obra no seu melhor. Se pensarmos na infraestrutura urbana, concordaremos que em geral, a escala e extensão da infraestrutura de uma cidade dão a medida do contrato social daquela sociedade. Ou seja, quanto mais ampla e acessível a infraestrutura de uma cidade, mais completo o contrato social daquela sociedade, isto é, mais plena a cidadania de seus integrantes e mais ampla a sua sociabilidade. E, além da melhor sociabilidade não poderíamos supor que a ação ética, técnica e estética possibilitaria que a cidade se fizesse como obra de arte?

Do ponto de vista das ações de projeto o desafio estaria na possibilidade de, criadas as condições de cidadania, apreender e fazer ver de modo aprazível a cidade; de viabilizá-la para seus usuários, agindo diretamente nas estruturas fundamentais para o seu desempenho na cidade. Apreender a cidade é apreender onde estamos. No alto, baixo, vale, planície, norte, sul, rio, entre rios, colinas, rarefação, adensamento, periferia, centro. A arquitetura se estrutura sempre em situação, mesmo que abstraia o entorno. É ela que torna visível a paisagem e a topografia, construída ou natural. Trata-se de uma visão. Como dissemos acima, o partido do ponto de vista espacial, em sentido amplo, é o de estabelecer referências perceptivas criando diferenças em uma cidade tão saturada, tornando-a visível na sua estrutura e geografia, descongestionando-a: o desbloqueio tanto da visão quanto dos sistemas infraestruturais de fluxos e águas. Como deter o olho que não para de passar?

Na abordagem da instância infraestrutural do abastecimento de água da metrópole, e nos enfrentando com a recente difícil regulação da área, está claro que de certo modo, lidamos também com um contrasenso, na medida em que, talvez desejável fosse, que não houvesse ocupação alguma nestas áreas de mananciais: mas isto já seria outra situação em outra cultura, com outro contrato social e em outra metrópole. No nosso caso, ao contrário, dada a extensa rede de rios e córregos nas diversas microbacias do Reservatório Billings e, dada a ocupação inicialmente irregular praticamente generalizada, (ver figuras 2 e 3) podemos observar que o fenomeno das ocupações, objeto de remoções, é também generalizado. Os vários portos de areia visariam abrigar justamente estas populações em áreas de risco. Diferentemente, portanto, da ocupação mais habitual e conhecida através do lote de 10m X 25m (frequentemente fracionado em dois) que desenha a tônica da grande parte das periferias paulistanas.

Estes portos de areia – muitos dos quais, abandonados porque exauridos e consequentemente desativados - além de constituírem glebas com áreas generosas, têm outra condição favorável e inusitada: das crateras resultantes da extração de areia, resultaram os lagos por nós reiterados, que por sua vez ladeam as edificações do projeto e contam ainda com o entorno do mar de morros e da paisagem das águas (ver figuras 10, 11 e 12).

A ideia contemporânea de sustentabilidade dá-se como uma postura geral em relação ao projeto, sobretudo, por tratar-se de área de manaciais. A recuperação da área urbana, o sistema construtivo adotado que por ser em aço não produz resíduos, e a implantação dos edifícios com grandes vãos que apenas pontuam o solo, minimizam o impacto ambiental. Nos edifícios, especificamente, são adotados os princípios de green building (ver figuras 5 e 6). O solo naturalmente teria que ser descontaminado, como requer a legislação ambiental pertinente ao assunto, mas, aquilo que parecia uma situação abandonada, contaminada e sem saída tornava-se a possibilidade mais plena de uma ocupação digna e aprazível: ética, técnica e estética.

As densidades propostas são baixíssimas – 100 hab./ha. (ver figuras 4 e 8) – como deve ser numa área de mananciais e, a ocupação mescla todos os usos como um fragmento de cidade: habitação, comércio, serviços (ver figura 9) e usos institucionais. A implantação dos edifícios que mesclam residências, serviços e comércio tomam partido das variações dos níveis topográficos dos portos de areia que, como salientado, de crateras transformam-se em lagos. Projetados contra as curvas de nível e de acentuado desenvolvimento horizontal, os edifícios possibilitam grandes aberturas de paisagem e priorizam, nos térreos, atividades mescladas associadas a praças e circulações gerais que se interconectam com os demais edifícios (ver figuras 13, 14 e 15). O edifício escolar, por exemplo, (ver figura 12), sobre o lago resultante de uma das crateras daquele Porto, se faz como uma ilha com várias passarelas sobre as águas que conectam ao entorno. Os desenvolvimentos em altura contando com edifícios de até oito pavimentos são em geral definidos em consonância com as declividades mais ou menos acentuadas. (ver figuras 9 e11).

Dada e extensão do manancial, próximo ao piloto urbano no Porto 1, propusémos um outro piloto com clubes públicos para a área do Bororé (ver figuras 18, 19 e 21) onde, dada a beleza da área e suas restrições de ocupação, propusemos imensos trapiches públicos sobre as águas com dimensionamentos generosos (cada segmento tem em média 100m de comprimento por 5m de largura) criando uma espécie de malha sobre as águas para desfrute de atividades de lazer náuticas e correlatas (ver figuras 24 e 25).

Finalmente, a equipe multidisciplinar, na tessitura desta ação emblemática, trabalhando com pilotos de situações passíveis de replicação em grande escala, procurou nas suas várias instâncias criar um fragmento de cidade, imaginando-o como indutor de cidadania. Trata-se de dar a esta população condições dignas de moradia buscando minimizar as imensas desigualdades sociais, articulando moradia social urbana com todos os demais usos que caracterizam a cidade, e ainda com a preservação da área, donde as baixas densidades. O projeto, ainda estudo preliminar, aparece em seguida envolvendo as condicionantes de legislação, saneamento, condicionamento ambiental e reaproveitamento sustentável das águas e congêneres.

Referências


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SUMNER, A. M. Opacidade e situação. Óculum, Campinas, n. 4, p. 38-39, nov. 1993.


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EQUIPE:

Arquitetura: Anne Marie Sumner-Arquitetura Ltda.:

Arquitetos:
Anne Marie Sumner,
André Aaltonen,
Denise Xavier,
Jorge Felix.

Legislação e ocupação urbana:
Arq. Angelica Alvim,
Arq. Paulo Giaquinto,
Assistente Arq. Luciana Varanda Mattos

Sustentabilidade:
Arq. Luciana Flores Martins Swan

Saneamento:
Eng. José Lavrador

Estrutura:
Pedro Telecki

Consultoria Técnica em aço:
Eng. Humberto Bellei e Arq. Roberto Inaba / Usiminas

Consultor de Incêndio:
Eng. Valdir Pignatta e Silva/Normas contra incêndio / ABNT