Denise Morado Nascimento é Arquiteta, Doutora em Ciência da Informação, Professora da Universidade Federal de Minas Gerais e líder do grupo de pesquisa "Práticas sociais no espaço urbano" (PRAXIS).

Simone Parrela Tostes é Arquiteta, Mestre em Arquitetura, Professora da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e Pesquisadora do grupo de pesquisa "Práticas sociais no espaço urbano" (PRAXIS).

André Costa Braga Soares é Arquiteto, e Pesquisador do grupo de pesquisa "Práticas sociais no espaço urbano" (PRAXIS).

Hernán Roberto Espinoza Rieira é Arquiteto.

Janaina Marx Pinheiro é Arquiteta.

Renata Correa Zschaber Nogueira é Arquiteta.

Camo citar este texto

Como citar esse texto: NASCIMENTO, D. M.; TOSTES, S. P.; SOARES, A. C. B.; RIEIRA, H. R. E.; PINHERO, J. M.; NOGUEIRA, R. C. Z. Próteses urbanas: promovendo a coexistência sócio-espacial. V!RUS, São Carlos, n.4, dez. 2010. Disponível em: <http://www.nomads.usp.br/virus/virus04/?sec=7&item=2&lang=pt>. Acesso em: dd mmm. aaaa.

Resumo

Apresentamos no presente artigo a proposta Próteses Urbanas, enviada para o 4o Concurso de Ideas en La Red para Arquitectos y Estudiantes de Arquitectura de Iberoamérica, Portugal y España: Arquitectura para La Integración Ciudadana – VII Bienal IberoAmericana de Arquitectura y Urbanismo, Medellín, 2010. Apesar de escolhermos a cidade de Belo Horizonte como local de intervenção, acreditamos que as questões abordadas nos permitem uma compreensão de processos comuns a outras cidades brasileiras, nas quais a segregação sócio-espacial é uma característica constante.


Palavras-chave

Segregação urbana, coexistência, economia urbana.

Introdução.


Dentro do cenário urbano brasileiro, a co-existência social é urgente bem como desejável. Sendo assim, dialogamos com Carlos Nelson Ferreira dos Santos (1981), Pierre Bourdieu (1997, 2005) e Zygmunt Bauman (2001) sobre as dinâmicas urbanas, de modo a entender as forças em ação nas cidades brasileiras.

Partimos do entendimento de Milton Santos (1979) de que a cidade é um sistema configurado por objetos e por ações. Os objetos (fixos) que constituem a cidade são técnicos, intencionalmente concebidos, fabricados e localizados para o exercício de certas finalidades, constituindo as bases materiais para as ações representativas de uma época, sendo ao mesmo tempo também resultado das ações. As ações (fluxos) se associam à ordem espacial dos objetos; nesse sentido, sendo elas técnicas e/ou funcionais, tendem a ser formatadas e materializadas pelas forças produtivas que regulam o espaço.

Baseados em Santos (1979, 2006), buscamos desvelar bem como compreender a construção da cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, pelos circuitos da economia urbana e seus mecanismos de controle do espaço. O resultado é uma segregação sócio-espacial presente desde a fundação da cidade por meio do desenho urbano, planificação e setorização das funções.

A partir daí, as Próteses Urbanas são propostas em quatro lugares de Belo Horizonte como dispositivos físicos urbanos capazes de promover a coexistência sócio-espacial na medida em que: (1) potencializam a interação do habitante com o ambiente; (2) estimulam a ação do habitante por meio do corpo; (3) acolhem o aleatório, o espontâneo e o temporário no espaço, e, (4) alteram o uso que se faz do espaço.

1. Circuitos da economia urbana e os mecanismos de controle do espaço.


Importante a enfatizar é o fato, assinalado por Milton Santos (1979, 2006), de que nos países periféricos as forças produtivas da modernização atingem e transformam o espaço de modo altamente seletivo e desigual. Esta seletividade do espaço ao nível econômico e social é responsável pela formação de dois subsistemas, diferentes no tocante à organização e aos setores da sociedade que se beneficiam diretamente de cada um deles: circuito superior e circuito inferior (Figura 1).

Figura n.1: Os circuitos da economia urbana e as Próteses Urbanas como possibilidade de coexistência sócio-espacial. Fonte: autores, baseados nos conceitos de Milton Santos

Embora todo habitante da cidade deva senti-la como sua, a (possível) vivência da cidade é em grande medida condicionada por mecanismos de controle presentes nesses circuitos. Assim, o espaço urbano é dividido, segregado e excluído: (1) pelo zoneamento cartesiano que setoriza a cidade em áreas de habitação, de serviços, de comércio, de indústria; (2) pelo transporte coletivo ineficaz que regula a mobilidade urbana; (3) pelo sistema viário ordenador que privilegia os carros particulares; (4) pelo sistema de vigilância panóptico que controla socialmente o acesso aos espaços; (5) pelo poder imobiliário especulativo que alimenta incorporadores e construtoras; (6) pela política de patrimônio que congela o edifício histórico, monumentalizando-o; (7) pela desigual distribuição de serviços públicos e bens culturais que distingue o centro da periferia.

Na prática espacial conforma-se o que Carlos Nelson Ferreira dos Santos (1981) denomina de padrão periférico de crescimento, ou seja, a expansão contínua da mancha urbana (Figura 2), promovendo núcleos supercongestionados e periferias precárias.

Figura 2: Evolução da mancha urbana de Belo Horizonte e Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). Fonte: Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, disponível em www.pbh.gov.br, 2010

2. Belo Horizonte construída pela economia urbana


Belo Horizonte é resultado do planejamento de engenheiros e técnicos que entendiam a cidade como um organismo saneado, socialmente higiênica, inspirada no modelo moderno de Paris e Washington. "Criar uma cidade, que não primasse somente pela sua beleza topográfica, pela sua arquitetura, pela sua higiene e por tudo quanto constitui o ideal moderno de um núcleo populoso. É preciso que o europeu, senhor do capital, conheça onde está a riqueza", afirmou o Prefeito Bernardo Pinto Monteiro em 1900 (PMBH, 200-a).

O plano, finalizado ao final do século XIX, dividiu a cidade em três áreas: a central, a suburbana e a rural. A área central, limitada pela Av. do Contorno, foi definida a partir de um traçado geométrico e regular que delineia ruas perpendiculares e avenidas em diagonal; essa recebeu imediatamente investimentos para o surgimento das estruturas de transporte, educação, saneamento, edifícios públicos e comerciais bem como instalações industriais. A área suburbana foi formada por ruas irregulares sem investimentos direcionados principalmente à infraestrutura urbana; aqui, os moradores do antigo (e destruído) arraial se firmaram, expulsos para a periferia em razão da desapropriação e demolição de suas casas bem como da imposição do mercado imobiliário estimulado pela gestão municipal. A área rural era composta por chácaras responsáveis pelo abastecimento da cidade.

Hoje, dentro da dinâmica da expansão urbana própria das cidades brasileiras, faz-se ainda presente em Belo Horizonte a lógica centro-periferia. Imbuída de racionalidade técnica, herança do pensamento positivista do século passado, a cidade é o lugar visível da arquitetura monumental, das construções ou áreas embelezadas, dos investimentos concentrados e localizados. Estes não só veiculam os valores da classe dominante (os cidadãos privilegiados) como também expulsam os pobres (os cidadãos últimos da fila) do convívio público (Figura 3). Os cidadãos excluídos continuam próximos à fronteira periférica, não mais definida pelo limite da cidade planejada e urbanizada de Belo Horizonte – a Av. do Contorno, mas pelos limites, sempre em expansão, da Região Metropolitana, e que hoje envolve hoje 33 municípios.

Figura 3: representação das condições sócio-econômicas de Belo Horizonte. Fonte: autores, baseado nos dados do Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado da RMBH, 2010.

No núcleo central planejado ainda estão as possibilidades de trabalho (formal ou informal) e de serviços urbanos, historicamente construídas para grande parte da população, que entretanto, não consegue morar neste mesmo núcleo. Desta maneira, cria-se um movimento diário de percursos, estruturado pelas grandes vias de circulação de veículos que ligam os moradores pobres de lugares cada vez mais remotos a esse núcleo central. As linhas de metrô existentes são bastante reduzidas e desarticuladas espacialmente, exigindo-se das grandes vias a organização dos percursos de ônibus centro-periferia. O ônibus – modalidade majoritária do serviço de transporte público de Belo Horizonte, prestado por empresas privadas – funciona então como protocolo de acesso de grande parcela da população aos postos de trabalho, bens e serviços.

Figura 4: Processo de periferização de Belo Horizonte. Fonte: autores.

O processo de periferização das cidades brasileiras, exemplificado aqui no caso de Belo Horizonte (Figura 4), é legitimado pelos agentes envolvidos na produção do espaço urbano. Os cidadãos, privilegiados pelas estruturas sociais, físicas, econômicas e políticas das áreas centrais, distinguem-se daqueles que, pela força dessas mesmas estruturas, são expurgados para áreas distantes e marginalizadas. Assim como o modo de organização e de ocupação do espaço é estruturado por esse padrão de crescimento, no caso do Brasil, as periferias existem para que o centro da cidade possa existir.

3. Próteses urbanas: promovendo o lugar da coexistência sócio-espacial


Como proposta de intervenção, desenvolvemos as Próteses Urbanas em quatro áreas de Belo Horizonte localizadas em cruzamentos da Avenida do Contorno com importantes vias de circulação e articulação do centro da cidade com a periferia das zonas oeste, noroeste e sul da cidade. Tais áreas localizam-se em cruzamentos com as avenidas Teresa Cristina, Amazonas, Raja Gabaglia e Nossa Senhora do Carmo (Figura 5). A zona oeste tem uma população de 268 mil habitantes, distribuída em 37 bairros concentrados ao redor do Anel Rodoviário. A região noroeste é formada por uma população de 340 mil habitantes, recortada por avenidas que ligam o centro à bairros tradicionais e à cidade industrial. A região sul, com 360 mil habitantes, é caracterizada pela forte especulação imobiliária e pela presença de aglomerações informais, consolidando-se como referência comercial, financeira e política da RMBH (PMBH, 2000-b).

Figura 5: localização das Próteses Urbanas. Fonte: autores.

As Próteses Urbanas funcionam como dispositivos capazes de potencializar apropriações e interações diversificadas no ambiente urbano, que não acolhe ou incentiva de modo igualitário a ação de todas as pessoas ou grupos sociais. Valorar a rua e suas calçadas neutraliza os efeitos da monumentalidade, do funcionalismo, da segregação e da modernização tecnológica. Nesse sentido, as Próteses Urbanas são espaços da expressão, da afirmação ou do confronto. O lugar da vida comum está onde o corpo experiência a realidade cotidiana e a compartilha com o outro.

As ruas e calçadas, bem como os resíduos urbanos, não precisam ser pedestrianizados ou redesenhados, mas potencializados para que abriguem suportes ou marcos físicos para as práticas sociais casuais e compartilhadas – encontro, descoberta, convívio, manifesto ou entretenimento – bem como para os usos imediatos próprios do cotidiano – sentar, descansar, guardar objetos, conversar, beber água, trocar informações. Por meio das Protestes Urbanas, a superação do sentimento de não-pertencimento aos lugares pode ser alcançada se aos habitantes é dada a possibilidade de participar, de fato, na redefinição do espaço urbano.

Os espaço comuns da cidade são privatizados para os automóveis em prol do desenvolvimentista moderno. Retira-se da rua e das calçadas o papel de abrigar as diferenças sócio-culturais daqueles que vivenciam corporeamente a cidade e reorganiza-se as atividades urbanas em bens socialmente e culturalmente controlados, como os condomínios fechados, shopping centers e centros culturais. As Próteses Urbanas abrigam o uso espontâneo do espaço, acordado entre os habitantes da cidade.

O desenho urbano moderno, regrado pelas leis autoritárias e normas disciplinares (lei de uso e ocupação do solo, posturas municipais e código de obras, etc) bem como calcado nos processos de ordenamento da produção do espaço urbano, é um dos fatores responsáveis pelo encolhimento do lugar da vida em comum. As Próteses Urbanas possibilitam a vida pública, ativa e informal, que pode ocorrer em qualquer lugar; mas se, e somente se, entendido como lugar sem controle de acesso e sem obstáculo para a participação de qualquer pessoa.

As Próteses Urbanas compreendem tubos metálicos modulados e articulados por tecidos coloridos impermeáveis – prótese superior – que dão condições de uso (iluminação, sombra, água potável, painel de informações LED, conexão Bluetooth) às placas em plástico reciclável articuladas por espaçadores de borracha – prótese inferior – dispostas para sentar, descansar, guardar objetos, conversar, beber água, trocar informações.

Segue, em anexo, a proposta das Próteses Urbanas.

Referências


BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2001.

BOURDIEU, Pierre. O campo econômico. Política & Sociedade, Santa Catarina, v.4, n.6, p.15-57, Abr. 2005.

BOURDIEU, Pierre. Efeitos de lugar. In: ________ A miséria do mundo. São Paulo: Ed. Vozes, 1997. p.159-166.

SANTOS, Carlos Nelson F. Velhas novidades nos modos de urbanização brasileiros. In: VALLADARES, Licia do P. (Org.) Habitação em questão. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.

SANTOS, Milton. O espaço dividido. Os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979.

SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Editora da Universidade São Paulo, 2006.